30 de novembro de 2003

Temos a memória curta e convencimento longo

Hoje regressei a casa, ao segundo dia de um fim de semana prolongado, de três dias. Era isso que estava previsto. O que não estava propriamente previsto, no meu boletim meteorológico, era o tempo desgraçado que tem feito. Embora, muito provavelmente, o estivesse no boletim oficial, emitido pelos únicos serviços com credibilidade para o fazerem: os de meteorologia.

Mas adiante, correu tudo bem, até a ida à Praia de Vieira de Leiria para almoçar. Devendo salientar-se, em todo o caso, que mesmo apesar da muita chuva foi possível e fácil ver grandes áreas de pinheiros pertencentes às repetidamente assinaladas “Matas nacionais”, ardidos durante o último Verão e que, independentemente da idade, continuam de pé, embora mortos. Portanto o Estado que temos dá-nos, como sempre, o exemplo. Mau, como sempre também, para que nos continuemos a questionar sobre a sua capacidade para servir de exemplo a seguir seja no que for. E que, cada vez com maior frequência, nos perguntemos para que é que, de facto, serve o Estado. Às vezes dou por mim a dar razão ao governo – em sentido abstrato – quando afirma que temos Estado a mais. E, indiscutivelmente, temos. Em tudo e sistematicamente. Porque sempre que intervem o faz mal e porque sempre que deveria intervir pura e simplesmente se abstem e se demite das responsabilidades que deveria assumir. Do poder, não, desse não se demite. Cada ministro, cada secretário de estado, cada vereador, cada presidente de junta tem o cuzinho colado à cadeira com Araldite, aquela que servia para colar cientistas ao tecto, de cabeça para baixo. Lembram-se dessa cola?

Mas, outra vez, adiante. Com pompa e circunstância – e com chuva, bem o espero! – realizou-se hoje em Lisboa o dito sorteio da fase final do Euro 2004 do nosso descontentamento. De sorteio aquilo teve muito pouco e toda a gente o sabia, é quase igual ao sorteio dos árbitros para os jogos da nossa pretenciosa superliga. Entram todos no pote – o termo é fixe, com o tempo há-de haver uma certa honestidade e acabar mesmo em tacho – e depois excluem-se os que são do Porto, do Benfica, do Sporting e do Boavista. Os do Guimarães deixam-se ficar mesmo que o Dr Pimenta Machado reclame. Os do Algarve também podem ficar: o Algarve não tem futebol e para lhe inaugurar o estádio teve de se lhe enviar um futebolista amador que até é profissional do governo. Se o Sr. Major não gostar de barbudos, por causa da concorrência, excluem-se também. E os carecas, os coxos, os divorciados, os canhotos, os adventistas do sétimo dia, os seguidores do auto-proclamado bispo Edir Macedo também se excluem. Ficam dois, faz-se o sorteio, rigoroso, isento, honesto. Depois de terem sido todos incuídos no pote.

O sorteio de hoje começou por chamar cabeças de série a quatro selecções. Depois forte mais a outras quatro, apenas forte a mais quatro e forte menos às restantes. Em teoria uns são mais fracos do que outros que são exactamente iguais aos que são considerados mais fortes do que eles. Mas pronto, já se sabia que era assim. Connosco pernoitam a Espanha, a Grécia e a Rússia. E os nossos jornalistas, que são mais adeptos do que profissionais de informação, exultam. Fazem demonstrações do português inovador e criativo que fizeram com o Sr. Gabriel Alves. Inventam, disparatam, asneiram, fazem pela promoção à categoria profissional que se segue nas suas carreiras. Meu caro amigo Ribeiro Cristóvão deixa lá a assembleia, não vais aprender lá nada, regressa à tua Renascença, estás perdoado.

O nosso grupo, adiantam os nossos jornalistas e garantem-no os nossos comentadores, é acessível. O único senão é a Espanha mas como com eles é o último jogo, nem tem importância. O que aconteceu em Guimarães, se é assunto da actualidade é melhor perguntarem ao Dr Pimenta Machado que ele é que é de lá. Se for histórico, isso sim, sabemo-lo todos, foi dali que partiu D. Afonso Henriques, à conquista. A Grécia, ora a Grécia. A Grécia é mais velha do que a sé de Braga, tem umas ruínas que são quase tão bonitas como as de Évora, só um bocado mais velhas. Até há bem pouco tempo até na União Europeia iam atrás de nós, o que é coisa bem difícil. De resto? De resto o quê? Mandaram o Eng. Fernando Santos embora porque se viu grego para os entender. Mas ele também se vê grego com pouca coisa: já se tinha visto antes grego no Porto e agora lá se vai vendo grego no Sporting. Por pouco tempo, espera-se! Mas depois há-de ver-se grego noutro lado qualquer!

Ainda o ano passado, quando do mundial da Coreia-Japão, o nosso primeiro pediu aos rapazes, quando se foram despedir dele, que lhe trouxessem a taça. Eram favas contadas. O grupo nem era fraco. O grupo em que calhámos, com vossa licença, era uma grande merda. O Oliveirinha – lembram-se dele, o da desinteressada Olivedesportos, o seleccionador? - mandava os adjuntos para o banco, ele ia curtir a ressaca da noite anterior, estava no papo. Deu-se ao luxo de prescindir do guarda-redes titular que não era preciso sacrificar e mandou o Baía, com uma carreira brilhante feita em Barcelona e nas demolidas piscinas das Antas a curar lesões. Então quem, nas apostas, arriscava um tostão – bom tempo, o dos tostões! – furado nos Estados Unidos, na Coreia e mesmo na Polónia? Naturalmente, ninguém. Foi o que se viu, todos eles nossos amigos, mandam-nos de regresso a casa mais cedo para que a federação do Dr Madail pudesse poupar nas despesas obedecendo à política pragmática – termo bonito este, gosto muito! – da Dra Manuela Leite. Para o ano, vamos a ver. Nos estádios, não poupámos. No convencimento – viu-se logo hoje, no dia do sorteio – também não. Vamos a ver no resto! Mal ou bem, gostando ou não dele, por uma vez ouço o Sr. Scolari. O nosso objectivo não é ganhar à Grécia, nem à Rússia, nem sequer à Espanha. O nosso objectivo é passar à fase seguinte!

28 de novembro de 2003

Não tenho nada contra os engenheiros, mas...

Bastas vezes pela vida fora, nos mais diferentes lugares, nas mais diversas circunstâncias e nos mais singulares acasos, me têm achado com cabeça, tronco ou membros de engenheiro. E vai daí, o tratamento inevitável. Que corrijo invariavelmente. Primeiro, não sou engenheiro. Segundo, título – seja qual for – não é apelido. Terceiro, não tenho nada contra os engenheiros mas acabo a contar sempre a seguinte piada, pelo menos mais velha do que a blogosfera.

Dizendo que há na vida três formas de gastar dinheiro, porque ganhá-lo é um bocado mais complicado. Para alguns, é claro, para alguns! Com o jogo, com as mulheres e com os engenheiros.

Gastar dinheiro com o jogo é a forma mais fácil. Com as mulheres é a mais agradável e com os engenheiros é a mais rápida. Actua como vacina contra o vírus mais renitente e, naquele sítio, nunca mais ousam tratar-me por engenheiro!

Quanto a não ter nada contra os engenheiros, tenho andado a pensar nisso todo o dia de hoje. Depois daqueles três secos com que os turcos não sei de onde aviaram ontem o Sporting quase começo a achar que a estória está certa!

TSF – O forum mulheres sobre o Euro 2004
A TSF, para que a não viessem a apelidar de machista, resolveu promover no período da tarde um outro forum, dedicado às mulheres e moderado por Margarida Pinto Correia. Daqui a pouco aquela estação preenche o seu tempo de emissão com foruns e, nos intervalos, vai emitindo noticiários. E, mesmo assim, só saberemos da ida de Bush ao Iraque no dia seguinte quando, a sono solto, já o mesmo dorme na Casa Branca.

O forum desta tarde teve por tema o Euro 2004 e permitiu-me chegar à conclusão que, para além das particularidades específicas da condição de mulher, elas se comportam exactamente como os homens. Umas gostam de futebol e outras não, umas são do Futebol Clube do Porto, outras do Benfica e outras ainda do Sporting, apesar do terramoto que veio da Turquia cujo nome se escreve usando hieroglifos. Umas acham que foi muito bom construir estádios para utilizar o dinheiro que veio da União Europeia, outras não. Umas acham que os novos estádios vão dar excelentes condições de trabalho aos jogadores de futebol, outras não. Umas acham que o Luís Figo é um mercenário que só vai à selecção por dinheiro, outras não. Umas acham que está mal ser a mulher do mesmo Luís Figo a fazer a promoção do Euro 2004, até porque é sueca, outras não. Umas acham que ele poderia ter arranjado um modelo nacional, nascido na Malveira, outras não. Umas acham que ele criou uma fundação com o seu nome para ir buscar subsídios ao Estado porque dinheiro dele não vai para lá, outras não. Umas acham que nem todos os árbitros são ladrões, outras não.

Mas não acredito que vão para os estádios vociferar e gritar nomes que ofendam as mães dos árbitros. E será até muito problemático, na maioria dos casos, arranjarem maneira de lhes insultarem os pais!

Porque é que o Bush foi ontem ao Iraque?

Em primeiro lugar para aproveitar o facto de ter sido feriado nos States e de, por isso, não estar obrigado a ir trabalhar para a Casa Branca, marcar o ponto, aturar milhentos assessores a tentarem meter-lhe na cabeça coisas que não percebe e ainda a receber dirigentes feios e horrorosos de países que nem sabe que existem e muito menos onde ficam. E sempre a dizer-lhes, com o mesmo sorriso com que libertou o Iraque: o seu país é um paraíso!

Em segundo lugar porque teve a possibilidade de dispor de uma boleia num avião que não enguiçou passados dez minutos de voo, como repetidamente aconteceu há dias com um português que era suposto transportar turistas para o Brasil. Consta mesmo que o avião posteriormente alugado se limitou a levá-los para Cabo Verde porque já não tinham tempo para ir para mais longe e decidiram ficar-se pelo primeiro destino que surgisse na rota

Porque razão viajou Bush em segredo? Primeiro por razões internas. Os americanos são uns tontos que, velhos ou novos, viajam por todos os mais inimagináveis cantos do mundo, a comer hambuguers, a beber coca-cola e a comprar porcarias a título de recordações. Se soubessem da sua viagem cada um que o conhecesse iria pedir que lhe trouxesse um barrilinho de petróleo. Desculpou-se: é melhor assim, a minha permanência será tão curta que nunca terei tempo para ir encher esses barris todos. E mesmo que tivesse, alguém teria depois de os carregar no avião: de certeza que seria carga a mais.

Em segundo lugar fê-lo por modéstia e humildade. Se os iraquianos soubessem da sua ida iriam concentrar-se às centenas de milhar para o vitoriarem, estenderem-lhe as mãos, darem-lhe presentes como prova de gratidão pelo facto de os ter ido libertar a todos, mesmo sem eles quererem. E ele acha que não têm nada a agradecer-lhe, fê-lo desinteressadamente, por dever cívico, para que o pai se pudesse orgulhar dele também, uns tempos mais tarde.

Assim limitou-se a levar um perú e a deixá-lo na messe americana do aeroporto de Bagdad, no centro da mesa. Depois regressou porque o dia seguinte era dia de trabalho e, como em Portugal, parece que também corre por lá um abaixo-assinado a apelar à pontualidade. E ele não quer que os assessores tenham mais um pretexto para lhe dar cabo da moleirinha!

A Constituição de 1976 era democrática?

Alguns jornalistas, imprudentes, precipitados e broncos – e não os qualifico de outras coisas porque teria que ir consultar as postas (de pescada?) enciclopédicas do Pipi para encontrar adjectivos! – reagiram e noticiaram as declarações que o Dr Barroso fez ontem, afirmando que a Constituição de 1976 não foi democrática, como se se tratasse de uma autêntica heresia. Pior do que isso – e também por isso merecem ser no mínimo qualificados da mesma forma – os directores de alguns jornais deram guarida e essas notícias e permitiram até que fossem feitas chamadas à primeira página dos orgãos que dirigem.

É naturalmente condenável que um jornalista, provavelmente estagiário e acabado de admitir com recibo verde, como aquelas meninas que aparecem nos directos das televisões que não sabem o que fazer ao microfone e muito menos o que lhe dizer, não peça orientações e não promova nenhum tipo de investigação. Os jornalistas capazes, está visto, estão todos mobilizados ao serviço do processo da Casa Pia e da verificação pormenorizada dos orgãos sexuais de alguns dos respectivos arguidos.

Então não se chega lá com facilidade? O Dr Barroso votou a Constituição de 1976? Não votou! E se ainda persistirem dúvidas vão Dr Garcia Pereira. Mas acho que ainda não tinha idade para ter direito a voto e, sendo assim, creio que o assunto o não interessava muito.

27 de novembro de 2003

Era o que faltava! Então não se pode fazer um jeito a um amigo?

Toda a gente sabe que o regime em Portugal é uma democracia parlamentar! Então isso não está chapado na Constituição? Desde 1976 quando o país caminhava para o socialismo, mesmo antes do Dr. Soares se chatear e, sem explicações, o ter metido na gaveta? O professor Jorge Miranda, sabedor e diligente, tem-se esfalfado a explicá-lo aos muitos alunos que lhe foram passando pelas mãos. E, ainda, à parte do país que lhe dedica alguma atenção e se dispõe a ouvir e a aprender alguma coisa com o que ele diz. O professor Marcelo, a par com os sucessos literários da Margarida Rebelo Pinto e com o guia dos vinhos da região do oeste, não se cansa de o salientar nos seus sermões de domingo à noite. Os párocos – cada vez menos porque, dizem, há falta de vocações – proclamam-no do púlpito abaixo, enquanto os fiéis que ajudam à missa, porque caiu em desuso a figura do sacristão, abanam a cabeça numa atitude de plena concordância. Até no futebol, até no futebol, o regime democrático está instaurado e chegou como o o Sr. Salvador Caetano diz que chegou a Toyota: para ficar.

Vem agora a público o favor que o Sr. director regional adjunto da Educação do Centro terá feito a pessoa amiga na colocação de uma professora de Viseu. E sabe-se de outras suspeitas, também na colocação de professores, em Santarém, Castelo Branco e Coimbra. Como se isto fosse o fim do mundo, os jornalistas que não obtiveram autorização para estarem presentes no exame dos orgãos genitais do Sr Carlos Cruz, desenham a tragédia e fazem cair o carmo e a trindade. Então não é de todo evidente que a este director regional adjunto assistem os mesmos direitos que assistiram ao Dr. Martins da Cruz? E a senhora que solicitou o seu empenho não será porventura uma eleitora de pleno direito, com cartão e tudo, até porque o recenseamento é obrigatório? Não descortino que possa haver problemas com favorecimentos noutros distritos. A cunha é de há muito uma instituição nacional e connosco pode certamente a Europa toda aprender o que não sabe. Não interessa que o caloiro A, com notas muito elevadas e sem cunhas de ninguém, tenha entrado para o curso de medicina da Universidade Nova de Lisboa, por exemplo. Não interessa que se mate a estudar, dia e noite, fins de semana incluídos, e saiba de fio a pavio todos os ossinhos do corpo humano, até mesmo o estribo. Não interessa que tenha vintes às frequências e aos exames a que entenderem submetê-lo e que acabe brilhantemente licenciado com vinte também.

Quando for para o mercado do trabalho é melhor que conheça alguém que tenha um ministro por amigo. Ou um secretário de estado, até mesmo um deputado ou um presidente de câmara. Pode não iniciar funções na profissão para que andou uns anos a queimar as pestanas, mas sempre se arranja um qualquer lugar de assessor. Sim, com carro para uso pessoal, gasolina, despesas de representação e cartão de crédito. Para compensar o ordenado que não é lá grande coisa, apenas dois mil euros. E agora aparecem as gordas nos jornais, como se estivéssemos perante coisa nova e de que ninguém soubesse? Há de facto gente com muita lata. Que só reage por despeito e por inveja. Não seria melhor que vissem os amigos que arranjam e avaliassem se os mesmos lhes podem servir para alguma coisa, fazendo-os subir na vida?

Pedroso despiu-se dos pés à cabeça

Este é o título principal de um jornal diário desta manhã. Que diz ainda que lhe contaram os dentes e viram-lhe os órgãos sexuais com uma lanterna. O título, naturalmente, é sensacionalista e está incorrecto. Porque se começou pelos pés, é evidente que se descalçou dos pés à cabeça. Depois essa de lhe contarem os dentes. Então na escola não aprenderam qual é número de dentes que, num regime democrático, cada um de nós tem na boca? Ou o Dr Pedroso foi sujeitar-se a qualquer rastreio da cárie, acautelando a sua saúde e o seu bem estar futuros? Ou ainda, pior do que isso, a condição de deputado dá-lhe direito a uma dentição de leite mais resistente e duradoura e a uma dentição definitiva em que há mais incisivos do que têm os simplesmente eleitores?

Depois, pasme-se: viram-lhe os orgãos sexuais com uma lanterna? Por pouco viam-nos à lupa, dissecavam-nos e viam-nos ao microscópio. Então as escolas de medicina não têm modelos nem figuras que sirvam para o efeito? Isto, desculpem, parece de um “voyeurismo” – ai que não sei se é assim que se escreve esta merda! – perfeitamente mórbido. É como ficar-se a olhar para o espelho, deslumbrado, a exclamar: Deus meu que me fizeste tão bonito e tão viril. Se tivesse tempo que desse para isso e ainda não fizesse o sacana do frio que já faz ia direito a Bragança e acabava notícia da Time como as meninas brasileiras, não acostumadas ao clima. Mais prático, mais perto e mais barato não teria sido mesmo dar um salto às Caldas e, em função da miopia de cada um, escolher o tamanho mais adequado e fazer a análise detalhada? Com tudo nas mãos?

Não fosse o segredo de justiça e a comunicação social não se ficaria pelas cuecas do Dr. Pedroso. Seguramente lhas puxaria para baixo ou até mesmo o despojaria delas. E viria trazer ao magote curioso e impaciente informações indispensáveis sobre a sua cor, a sua marca – as do Sr. Castelo Branco eram Gucci, lembram-se? – o seu estado de uso e, quem sabe, sobre os cuidados de higiene que apresentavam. Tudo acompanhado de sinais particulares, como o cotão no umbigo, o comprimento dos pêlos pélvicos, o tamanho da coisa em repouso e a assimetria dos apêndices. Nesse dia, à custa das audiências, até acabavam as cenas de cultura na casa mais famosa do país e a D. Teresa Guilherme era despedida. Se calhar até era obrigada a adiar o casamento, coitada!

Começa a cheirar a Natal

A pretexto do negócio os restaurantes começaram a afixar cartazes nas vitrinas anunciando aceitarem marcações para festas de Natal. Informam sobre o número de salas disponíveis, a capacidade de lugares de cada uma delas, as condições de comodidade e de conforto, as facilidades de transporte ou de estacionamento. E, obviamente, as iguarias à disposição dos convivas, sempre frescas, sempre das melhores proveniências, sempre objecto da mais profissional e competente confecção. Quanto a preços é o que se sabe, a vida pela hora da morte, está tudo muito caro, o pessoal escasseia mesmo que o desemprego aumente, além disso ganham salários mínimos incomportáveis. De forma que não podemos fazer milagres, menos do que isso por cabeça não pode ser, sem bebidas, e não chega para pagarmos a electricidade. Não fossem V. Exas. clientes de longa data, que muito consideramos, e nestas condições até recusaríamos o serviço.

A pretexto da confraternização e da solidariedade com toda a gente, porque o Natal é apenas uma vez por ano, as empresas começam a organizar-se em mais pequenos grupos que escolhem datas, seleccionam locais, negoceiam preços e ementas e marcam horas para que o repasto tenha início. Os administradores descem ao nível dos contínuos, vêm sentar-se à mesma mesa, engolindo apressadamente o caldo verde onde a couve ainda parece fugir para a horta. Condescendem a ir no bacalhau com natas, salgado e com espinhas pelo meio, sem o mesmo apuro a que o Escondidinho os habituou. Sujeitam-se a beber uma mixórdia a que chamam vinho, de que ninguém vê nem as garrafas nem a proveniência. Alguns, mais ousados, ainda recusam: só bebo água, tenho uma úlcera duodenal de origem nervosa, pensando para consigo: então o estúpido do Lázaro, que é contínuo, vai lá perceber esta merda?

Depois das rabanadas, encharcadas em vinho do Porto, açúcar e canela, e do café de má qualidade, mal tirado e frio, espera-se que os senhores administradores digam meia dúzia de palavras. A maioria deles tem o mesmo à vontade que a maioria dos deputados que preenchem as bancadas da Assembleia da República: não sabe dizer nada. E sendo assim, como faz muitas vezes o Dr. Ferro, trazem uma cábula no bolso onde previamente escreveram o que vão dizer, mesmo que frequentemente atropelem a leitura. Mas está bem, nem todos lêm como se fosse o Sr. Vítor de Sousa a dizer poemas do Sr. Eugénio de Andrade.

As palavras são normalmente como as confraternizações: cínicas, falsas e hipócritas. Porque durante um ano se andaram todos a tentar enganar uns aos outros, muitas vezes até conseguindo-o. Os senhores administradores pensando: então a Dra Manuela Leite não aumentou a ponta de um corno aos calaceiros dos seus funcionários e íamos nós agora aumentar estes inúteis e mandriões? Quando a crise está à vista de todos e os nossos lucros só cresceram quinze por cento em relação ao ano passado! Por seu lado os empregados, diligentes na resistência passiva e na sorna vão pensando: sacanas! Mudaram-se para casas novas, com piscinas no quintal e garagens para quatro carros, aquecimento central e paineis solares nos telhados para terem subsídios do Estado, deram carros novos aos filhos, vão para Lisboa e quem os quiser encontrar é na Cova da Onça. E querem que a gente trabalhe, merdosos! Vou ao médico da caixa, sinto-me doente de revolta, vou ficar de baixa para aí um mês ou mais.

É esta, muitas vezes, a solidariedade da quadra natalícia, quando não é pior. Porque frequentemente os convivas vão-se mutuamente apunhalando até à beira da mesa. Para acabarem a matar-se à hora do café e do digestivo.

26 de novembro de 2003

Não se preocupem, continua tudo bem!

Hoje o país não foi contemplado com a organização da America’s Cup, com que já contava, um pouco à maneira do ovo no cu da galinha. Mas o mesmo aconteceu com as cidades de Marselha e de Nápoles que talvez tenham feito menos alarido sobre o assunto. Valência foi a contemplada e será para ela que serão encaminhados turistas, dólares, acontecimentos, empresas e postos de trabalho.

Por cá, começaram as acusações recíprocas dos nossos inefáveis políticos. Quando o ministro Arnault decidiu acabar com a Docapesca e dar mais um contributo pessoal para o número de desempregados, alegou que aquela zona da cidade precisava de ser requalificada e, de cátedra, proclamou que isso era bem mais importante do que meia dúzia de obsoletos barcos de pesca e três dezenas de pescadores iletrados e descalços que poderiam facilmente ser realojados em qualquer acampamento cigano.

Com lágrimas de crocodilo a oposição vociferou que a decisão castigava os mais pobres, – nunca vi nada que tivesse sido de maneira diferente, mas está bem! – que criava desemprego e que privava os pescadores de um porto de abrigo. Convocou jornais e emissoras de rádio, marcou conferências de imprensa para a hora em que a D. Manuela Moura Guedes, de boca aberta, nos gritava pela casa dentro as últimas tragédias do mundo. Ninguém os ouviu ou os informou de que o tempo de antena acabara. Os operadores de câmara limitaram-se a desmontar o equipamento, a carregá-lo na parte de trás do veículo todo o terreno e a irem-se embora.

Hoje, depois de divulgada a escolha, a partir de Genebra, o governo comoveu-se tanto que o ministro Arnault chegou às lágrimas. Puxou de um lenço imaculadamente branco que trazia no bolso do casaco, limpou as lágrimas e secou o pingo que ameaçava cair-lhe do nariz. Depois disparou dizendo que o governo fizera tudo o que estava ao seu alcance para trazer a prova para o país, que tínhamos as melhores condições e a melhor vista para a baía. Mas que o mal vinha de trás, dos governos anteriores, que tinham cedido à despesa sem controlo e que nada tinham feito no sentido de que Lisboa fosse, por mais longo período, local de residência permanente do Sr. Patrick Monteiro de Barros. E nisto Lisboa e Cascais são uma e a mesma coisa, é tudo tão perto, vencida sem acidente a curva do restaurante Mónaco, o resto é um tirinho.

A oposição não perdeu tempo a salientar que o acontecimento nos iria tirar do rabo da Europa, o salário mínimo iria equiparar-se ao que vigora em Espanha, o Dr. Bagão teria que recuar na sua intenção de reduzir os montantes dos subsídios de desemprego – para acabar com os desempregados! – e de doença – para acabar com os doentes! – e seríamos um país feliz e contente, de gente inteiramente ocupada e saudável. Sem digestões mal feitas e sem cálculos na vesícula! Mas que isso não iria acontecer porque o governo se não empenhou, não fez pressões quando e onde devia e o deputado Lello falou mesmo na debilidade dos “lobbies” que não sei o que é.

Mas calma! Quando as regatas estiverem a decorrer creio que sempre se arranjará algum trabalho político que possa ser feito em Valência. Mesmo que ainda me recorde de ouvir a minha avó dizer que “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento!”.

Ensaiámos o sapateado antes de tempo

Desde há tempos que espalhamos o facto eminente de Lisboa poder ser seleccionada como cidade anfitriã da próxima edição da America’s Cup. Encomendámos os foguetes e começámos logo a deitá-los, sem nos preocuparmos em apanhar as canas.

A decisão era anunciada hoje, em Genebra. E, por isso, logo os noticiários sucessivamente foram abrindo com essa notícia. Já antes se tinha começado por fechar a Docapesca e enviar para o desemprego mais algumas pessoas para que alguma coisa pudesse crescer neste país triste e marginal: o número de desempregados.

À hora indicada a selecção foi divulgada recaindo na cidade espanhola de Valência. Os comentários recolhidos de seguida manifestam a tristeza de quem os emite, tínhamos melhor vista para o mar, os ventos mais favoráveis, a proposta era ganhadora. Mas não foi!

Uma certeza fica: não será necessário construir não sei quantas marinas, obviamente subsidiadas pelo Estado. Mas que o projecto para os terrenos da Docapesca vai prosseguir, não haja dúvidas. E alguém vai realizar chorudos lucros à sombra da America’s Cup que vai para a cidade de Valência. Quanto aos desempregados, o ministro Arnault já se pronunciou e já disse que isso não era importante. E como ele é ministro...

A normalidade continua

Pego no primeiro jornal da manhã e concluo: o país continua dentro da normalidade. Logo na primeira página a parangona:

BRIGADA FISCAL TRAVA FRAUDE DE 70 MILHÕES DE EUROS
Autoridades detiveram 23 pessoas por contrabando de álcool em grande quantidade para países da Europa do Norte.


Posso dedicar-me às tarefas diárias habituais. Nada se alterou, a vida e o país continuam.

25 de novembro de 2003

O Porto está mais seguro

Quase lado a lado, na secção regional dedicada ao Porto, um dos jornais que hoje folheei trazia duas notícias. Na primeira o presidente da Câmara, Dr Rui Rio, assegurava que a cidade estava mais segura, referindo-se certamente não sei a que bairro social classificado de problemático. Na segunda garantia que ia continuar a insistir para que a cidade fosse dotada com mais numeroso contingente de polícia.

Não há contradição. Os bairros onde a insegurança era relevante estão mais seguros porque aquela se transferiu para o centro da cidade e habita nas barbas do Dr. Rio. Ainda recentemente, a cem metros das trazeiras do edifício dos paços do concelho, três emigrantes de leste foram, durante a noite, barbaramente assassinados a sangue frio. Que eu saiba nada, até agora, foi divulgado sobre as investigações que, certamente, estarão em curso. Deve ser por causa do segredo de justiça que, como se sabe, só não se aplica ao processo da Casa Pia e aos respectivos arguidos.

Quanto a insistir no reforço policial da cidade, apesar desta estar mais segura, é lógico! Estando a cidade mais segura podem para cá vir todos os polícias do mundo que não correrão nenhum risco. Eu começaria até por recomendar ao ministro Figueiredo Lopes que mandasse para cá o contingente que foi para o Iraque. Sempre arriscavam menos a pele, se calhar ganhavam era um bocado menos. A menos que o Dr Rio tenha verba!

Para que serve um blogue – 2?

O meu “post” anterior, com o mesmo título deste, mereceu a subida honra do comentário que se segue, afixado pela Sra. D. Inês Alva que não conheço. Posso todavia adiantar desde já que não há equívocos e que a respeitável senhora pura e simplesmente não percebeu nem o alcance nem tão pouco a intenção daquilo que escrevi. São coisas que acontecem, especialmente quando cedemos facilmente em termos emocionais e quando nos deixamos envolver à primeira no chamado nervoso miudinho que nos retira discernimento e senso comum.

Caro Senhor,

Com o devido respeito, inteire-se primeiro da verdade! Já ouviu falar de calúnias? Pois bem, é o caso que lhe têm exposto. É muito fácil apedrejar quem não conhece. Leia, analise, reflita. É-me indiferente se respeita ou não "aquela" pessoa, mas ela tem, de certeza, uma coisa a seu favor: um grupo! Eu, que sou Mulher de maiúscula, valho por mim só. Sou só eu e a minha dignidade, deste lado. Pergunto-me quem é o senhor para vir falar-me de dignidade. Gostava de lhe ver a cara, acredite. A minha não mente. Cresça, não seja tão influenciável, não atire pedras. Analise os textos, a linguagem, a pessoa que essa senhora é, no nível ou falta dele...

Deus os ajude a todos.


Não sei a que verdade se refere nem sequer a mesma me importa e, consultado o dicionário da Porto Editora que possuo à mão, fiquei a saber o que significa a palavra calúnia. Para além disso ninguém me tem exposto seja o que for nem estou interessado em que, seja quem for, o faça. Não sendo islâmico não me pesa a consciência de ter apedrejado fosse quem fosse, fosse quando fosse, fosse onde fosse. Habitualmente leio, tento entender, analiso o que precisa de ser analisado e reflito sobre aquilo que eventualmente mereça reflexão. Respeito, por princípio e por educação, todas as pessoas apenas por essa condição. Não me preocupo com os grupos que apoiam pessoas ou instituições a que não pertenço. Sou perfeitamente indiferente aos Ultra Dragões, aos Red Boys e à Torcida Verde, mesmo que o coração me penda, desde sempre, para os lados de Alvalade. E, para mim, já deu para perceber que todas as pessoas são “de maiúscula” e igualmente dignas sem necessidade de se chamarem todas Brites de Almeida. Não me recordo de ter falado nem em dignidade, nem em coisa nenhuma, apenas porque a não conheço, porque nunca lhe falei e porque jamais lhe escrevi. Quanto à minha cara, é vulgar, passa despercebida, como eu, na multidão que povoa a Rua de Santa Catarina todos os fins de tarde e não mente porque não são as caras que mentem. De resto, nunca me pus em bicos de pés em lado nenhum.

Não sei se formula um desejo ou se emite uma ordem quando me diz que cresça. De qualquer maneira isso é de todo irrelevante, mesmo face à minha mediana estatura física de apenas um metro e setenta. Para além disso, mesmo que fosse um desejo, é tarde, já não estou em idade de crescimento. Já ninguém me poderá ver na NBA a conseguir “afundanços” do alto dos meus dois metros e vinte. Finalmente, não sei a quem pertence o blogue 100nada e nem me interessa saber. Não sei como se chama a senhora que o assina e, já agora, também a não conheço. Nem vou conhecer em consequência disto ou de qualquer outra coisa.

Por fim, algumas considerações pessoais inevitáveis. Esta manhã afixava eu um “post” a falar no dia internacional de erradicação da violência contra as mulheres que hoje se assinala. Agora, ao fim do dia, e de forma que acho parcialmente machista, devo anotar o modo difícil – e ignoro ou desprezo qualificativos mais adequados e expressivos! – como as mulheres, muitas vezes, se relacionam entre si. Toda a gente sabe do relacionamento que haveria entre o Sr George W. Bush e o Sr Osama Bin Laden se acaso se encontrassem frente a frente: à boa maneira do antigo oeste americano. Quem sacasse primeiro ganhava. Era violento mas era linear e honesto. Embora estúpido!

Mais. Nunca recusei ou enjeitei polémicas, desde que servissem para alguma coisa e acabassem dando frutos de que alguém pudesse aproveitar fosse o que fosse, mesmo pouco. Não seria o caso neste assunto em que qualquer polémica seria um nado-morto. Mais do que moribundo, morto. Portanto, não vale a pena. E, não valendo a pena, ponto final!

Os actos transparentes dos nossos autarcas

O caso voltou hoje aos jornais. A Imoloc, empresa de construção civil que se preparava para construir – sem que fosse naturalmente habitação social – na chamada frente urbana do Parque da Cidade – do Porto, diga-se, para quem não conhece a situação e a cidade! – avançou com uma acção contra a Câmara do Porto e o seu actual presidente, no valor de 50 milhões de euros, o equivalente a dez milhões de contos. Porquê? Porque a actual Câmara – e bem, em minha opinião – se opõe a deixar que aquela empresa leve por diante os projectos de construção que tem para aquela zona.

Ouço há pouco, na TSF, que a autorização de construção terá sido dada pelo anterior presidente, Eng. Nuno Cardoso, dois dias antes de abandonar o cargo. Quer dizer, depois de ter perdido as eleições – a que aliás não foi candidato porque o negócio entre o arquitecto Gaspar e o indescritível Dr. Fernando Gomes o puseram à margem do plebiscito! – o Eng. Nuno Cardoso que deveria limitar-se a actos de gestão corrente quis ser ele a consumar a negociata, sabe Deus com que intenções e com que resultados. Isto, creio, não é uma questão de direito. Muito mais importante do que isso, é uma mera questão de senso comum. Que o Eng. Nuno Cardoso não foi capaz de ter, porque não quis, porque não percebeu ou porque se julgou no papel de um pequeno ditador. Sem nenhuma referência à sua altura, já se vê!

De imediato, convocou uma conferência de imprensa para explicar aquilo que não tem explicação e, mais uma vez, tentar resolver a quadratura do círculo. De preferência à hora a que as emissoras de rádio libertem os noticiários e – se elas estiverem dispostas a ir lá! – a que as televisões possam invadir-nos as residências com directos inúteis, cheirando à celulose de Cacia. Já sabemos: como o Sr. José Mourinho vai queixar-se do árbitro e da comissão de disciplina da Liga!

Para que serve um blogue?

Há tempo atrás – pouco, porque me iniciei nestas lides apenas a 14 de Outubro! – deixei a pergunta pendente num “post” quando, novato nestas andanças, era todo dúvidas e questões. Neste período, mesmo curto, aprendi alguma coisa e isso levou-me a ter outras dúvidas e a interrogar-me sobre outras questões.

Hoje deparo com este O ódio dos desconhecidos e não fico estupefacto porque já aprendi o suficiente para saber que a situação é vulgar e que não vale a pena estar a radicalizar pensamentos no que respeita a alguns comportamentos menos ortodoxos. Ou mais ignorantes, ou mais mal intencionados que levam pessoas a visitar blogues alheios para deixarem comentários tão rasteiros que deveriam envergonhar quem os deixa.

Mas, entre outras coisas, a sociedade que temos evoluiu para a falta de ética, ou para a ética do Big Brother e da noiva Teresa Guilherme. O respeito, já era. Os princípios perderam-se, a cultura – porque isto também se relaciona com a cultura – foi reduzida à expressão mais simples.

Uma das minhas dúvidas é saber o que falta à blogosfera como perguntava há dias o Paulo Querido. Mas não tenho nenhuma dúvida de que os comportamentos que aqui se denunciam estão irreversivelmente a mais. E que, por isso, deveriam ser banidos de vez e para sempre!

Dia internacional para a eliminação da violência contra as mulheres

A designação é demasiado extensa, como que a pretender camuflar uma realidade indesmentível, pefeitamente inadmíssivel em sociedades que se dizem civilizadas e de todo inaceitável e incompreensível no relacionamento que deve prevalecer entre seres humanos.

Não deixa de ser violência contra as mulheres a necessidade que a legislação de alguns países, nomeadamente do nosso, tem em estabelecer quotas para acesso das mulheres a determinados cargos.

Condenamos a segregação pela diferença da raça, da religião, da simpatia clubística, da nacionalidade. Depois concedemos, com aparato magnânimo, que as mulheres possam afinal ocupar um quarto dos cargos políticos. Como estamos no país em que estamos, sabe-se desde logo que essa legislação também não é para ser cumprida.

Finalmente, depois de sermos contra todas as formas de segregação, de as criticarmos em privado e em público, de participarmos em colóquios sobre o assunto, de empunharmos dísticos alusivos em manifestações de rua, depois de tanto e tão convicto empenhamento, que fazemos?

Valentes e ousados, do alto de uma estatura mais elevada e mais musculosa, espancamo-las e permitimos que no nosso meio outros continuem a fazê-lo. Repetida e continuadamente, sem que elas tenham cometido nenhum crime, sem que estejam em falta sobre nenhuma coisa. Muito apenas porque, fisicamente, são mais frágeis!

Como homem, mais do que incomodado e desconfortável por saber que isso acontece, devo simplesmente referir que isso me envergonha. Pela indignidade!

Eça de Queirós, 25.11.1845

Eça de Queirós nasceu na Póvoa de Varzim em 25 de Novembro de 1845, faz hoje 158 anos. Aqui se assinala a efeméride e se publica um trecho de uma carta sua, dirigida a Camilo Castelo Branco, que deixa transparecer a sua incontida ironia de sempre.

24 de novembro de 2003

O primeiro ministro vai ao professor Karamba – III

Passados já mais de oito dias, numa tarde, no curto intervalo entre duas audiências, o assessor chegou-se-lhe rapidamente ao ouvido e perguntou baixinho: então, já há novidades? Agora não posso, tenho o gabinete cheio, a agenda mais que preenchida, mas não deixe que eu me esqueça de ligar ao professor, antes de sairmos.

Pouco depois das 20 o ritmo no gabinete abrandou, o pessoal foi saindo, já nenhum presidente de junta telefonava. O assessor lembrou-lhe a necessidade da chamada telefónica. Ligou e do outro lado atendeu a mesma voz melosa de sempre: para saber o seu horóscopo carregue um, para marcar consulta carregue dois, ..., para ser atendido pela operadora carregue nove. Pimba, com convicção caregou nove. Em fundo surgiu-lhe a música das meninas da Ribeira do Sado que foi trauteando para se relaxar um pouco.

Cinco minutos à espera, pareciam os centros de atendimento da PT. Mas lá veio uma voz feminina, rouca, de cantora de blues escandinava, nascida algures na Serra Leoa. Perguntou-lhe educadamente: em que posso ajudar? Ligue-me ao professor, replicou. Depois de alguns entraves, de dificuldades várias, lá conseguiu que a mulher aceitasse transferir a chamada.

Uma voz masculina, igualmente rouca, sem nada de escandinavo, atendeu e saudou-o. Então, como está? Quase não me apanhavas que estou mesmo para ir-me embora para casa na outra margem, tenho uma festa, a minha sogra faz anos, o seu assunto está estudado, como é que quer. Pode ser relatório escrito, feito em computador, uma folha tamanho A4, envio pelo correio, à cobrança. Ou então relatório verbal, dez minutos de conversa no máximo, envio de cheque amanhã de manhã.

Optou pelo relatório telefónico, o professor confiava que na manhã seguinte lhe enviaria o cheque, não sabia que se não deve confiar nunca no Estado. Tinha poderes mágicos mas não chegavam para tanto, pareciam até mesmo inferiores ao do Luís de Matos a fazer aparecer futebolistas onde antes apenas havia desajeitados apanha bolas.

Bem, vamos começar com isto. Antes de mais você nunca mais chega aqui a esconder a cara a pensar que me engana. Depois para mim é vulgar atender personalidades importantes, desde jogadores de futebol, a dirigentes desportivos, a políticos, a empresários. Ser primeiro ministro não faz diferença, nem tem desconto nem se autorizam prestações. Cada um é como cada qual, todos diferentes todos iguais, uns mais iguais do que os outros. O Mantorras já cá veio por causa do joelho, o Nuno Gomes por causa do casamento, o Zé Maria por causa do namoro, etc.

Você o que interessa é na política. Você tem mais baralhos de cartas do que eu, tem lenga-lenga que chega e sobra, mas não cuida das coisas como deve ser. Tem que se acautelar com os seus ministros, alguns são perigosos. Como alguns também são meus clientes não vou dizer os nomes deles. Você depois adivinha-lhes. Um que mora num forte, cuidado que se te apanha a atravessares a rua passa-te a ferro. E foge num carro grande. E cuidado com os infiltrados que ele á capaz de contratar uma gaja já usada, um bocado em mau estado, para ir ganhar a tua confiança no gabinete. Levar-te ao casino para jogar nas máquinas, acompanhar-te para o estádio do Benfica, ir jantar contigo aos restaurantes do Guincho. Ou ir para mais longe, mesmo até Sesimbra. Ganhar a tua confiança. Depois perdes a confiança da Margarida estás a ver. E com o casamento não tens problemas, ela gosta de peixe, confunde-te com um cherne, evita que te cortem às postas para grelhar.

Para prevenir vais mandar cá os teus ministros, um de cada vez, pagamento na primeira consulta, à boca do cofre, sem recibo. Sim, mesmo a Manuela vai ter que ser assim. Para ti, comissão de vinte por cento, em dinheiro, sem documento. Toma lá, dá cá! E ainda a garantia de te dar protecção, anular os teus adversários políticos, mantê-los à distância. O Ferro entretido com o neto e com o Gaspar. O Carvalhas nas termas, em S. Pedro do Sul. O Louçã, ora, a recolher alimentos para os subnutridos do corno de África no dia mundial contra a fome. O Paulo, esse é teu aliado mas é mais perigoso do que qualquer outro. Vou pôr o Monteiro, aquele alto e magro, de óculos, a tomar conta dele. Vai lhe encurtar a trela, não te preocupes. Deixa que desse nem a Cinha depois se aproveita!

O estádio do Algarve foi inaugurado sem bola

Somos, como povo, acusados de tudo e mais alguma coisa. De termos chegado à India de olhos vendados, sem sabermos para onde íamos. De termos descoberto o Brasil quando Cabral pensava seguir na rota da Índia. De não termos negociado com os movimentos independentistas a independência das colónias. De termos abandonado as colónias sem negociações com os movimentos libertadores. De termos cedido à sedução fatal do olhar do Dr Cunhal e quase alinhado com os países comunistas. De termos traído a revolução dos cravos e virado politicamente à direita pela mão do general Eanes. De termos desbaratado os fundos recebidos da Europa para continuarmos atrás de toda a gente. De deixarmos, sempre, tudo para a última hora, sem apelo nem agravo. De não sabermos programar coisa nenhuma porque cada obra que estimamos em 50 milhões regista inevitavelmente um ligeiro desvio e acaba a custar o triplo. Somos apelidados de incapazes, incompetentes, improdutivos e inúteis. Confundem-nos com turcos e genericamente chamam-nos espanhóis.

Mas alto, depois de ontem a nossa auto-estima – que é uma das maiores preocupações que o ministro Bagão tem connosco! – está em alta. Finalmente uma coisa é programada como deve ser, a tempo e horas, muito melhor do que se fôssemos britânicos. Ontem à tarde foi inaugurado o Estádio do Algarve para um primeiro jogo que se vai realizar apenas a 18 de Fevereiro. Portanto, quase três meses antes. Nem o Dr. Filipe Pereira fez melhor as previsões sobre as listas de espera das cirurgias.

Foi uma cerimónia sem pompa, como dizem os jornais, embora com alguma circunstância. Na fotografia que ilustra o acto na edição de hoje, do jornal Público, podem ver-se algumas pessoas no centro do relvado, com a aridez das bancadas vazias em fundo, mas todas certamente importantes porque envergam fato e gravata. São reconhecíveis, para mim, que conheço pouca gente, o ministro Arnault e o autarca Vitorino, ambos com um pé em cima da bola, ao melhor estilo do Luís Figo. Diz o jornal que também esteve o autarca Emídio, que é de Loulé, de onde só conheço a Tia Anica.

Não consigo imaginar como aquela gente, envergando os fatos de casamento, teve a lata de se divertir com fogo de artifício sem ter ensaiado uma jogatana como se fazia quando frequentavam a escola primária, a bola era de trapos e o campo era o recreio com as árvores pelo meio. Sabendo-se, ainda por cima, que tudo daria certo, que não haveria desacatos, que ninguém deitaria a cobertura abaixo na euforia da vitória, quanto mais não fosse por respeito ao Sr. D. Manuel, Bispo do Algarve, que estaria certamente disposto a arbitrar o desafio.

Quanto ao custo total referem-se 35 milhões de euros, o equivalente e sete milhões de contos que as pessoas ainda entendem melhor. Diz-se que o Estado comparticipou com apenas 1,2 milhões, o semítico. E parece que a propriedade é das Câmaras de Faro e Loulé que, penso eu, terão coberto o remanescente do custo. Mas as Câmaras municipais, como as Juntas de freguesia, como os Institutos públicos não são, como toda a gente está farta de saber, Estado nenhum. A Câmara de Loulé é do Sr. Emídio, a Câmara de Faro é do Sr. Vitorino, eles é que pagaram o estádio, o estádio é deles. Só não têm agora é equipas que lá possam jogar e que integrem os escalões superiores. Mas aos fins de semana podem-se fazer uns jogos entre casados a solteiros, se juntarem o dinheiro suficiente para pagarem o aluguer aos Srs. Emídio e Vitorino. Porque o Euro 2004 também vai pagar pelos três jogos que aí vai fazer em Junho do próximo ano!

O Dr Prado Coelho regressou do Brasil

Mais depressa do que tinha acontecido com Pedro Álvares Cabral, o Dr. Prado Coelho regressou do Brasil. Onde, afinal, esteve acompanhado do Dr Augusto Santos Silva que, como sabem, não é o do banco. E retomou a sua coluna habitual no jornal Público depois de ter participado num colóquio sobre o tema “os intelectuais são ainda necessários?”. À sua maneira faz a descrição muito analítica de tudo. De onde foi, de quem foram os apoios e a orientação e quem assessorou.

Acaba a afirmar que o intelectual tem que saber que a sua função é hoje sobretudo a de um tradutor de códigos culturais e que essa função implica uma análise cuidadosa e uma utilização sagaz do sistema dos “media”. É uma frase densa, fechada, hermética, como são muitas vezes expendidos os conceitos e os pensamentos do Dr. Coelho. Humildemente não sei o que quer ele dizer quando alude a um tradutor de códigos culturais e pergunto-me que tradução? E que códigos? Ainda por cima quando a função implica, como escreve, uma análise cuidadosa e uma utilização sagaz do sistema dos “media”. Análise cuidadosa em que sentido, com que critérios, de que vectores do tal dito sistema? E a utilização sagaz? As utilizações devem todas elas ser sagazes, sejam do que for, ou não? Mas quanto à utilização, qual utilização, com que princípios e com que finalidade?

Parece querer estar a reduzir-se o intelectual assim a um género de detergente que lava tudo, sem marca de fábrica, sem dignidade e sem verdades absolutas. Que nunca houve e que ninguém nunca teve. O problema dos intelectuais é, a meu ver, olharem demasiado para o umbigo, é arrolarem filosofias e correntes e, fora de tempo, criticarem e discordarem. E reincidirem no isolamento das suas cátedras e das suas redomas, à margem das sociedades do dia a dia. E pretende agora o Dr Coelho que eles sejam tradutores de códigos dessas sociedades, consultados os “media” – termo de que não gosto e que, presumo, não exista! – e utilizados sagazmente. É mais do mesmo, muita intelectualidade fica à porta do Teatro Nacional de D. Maria ou dos museus da Fundação Calouste Gulbenkian. Sem que haja capitais europeias da cultura que lhe valham

O que falta à blogosfera

Francisco José Viegas mantém um dos blogues seguramente mais populares da comunidade com "posts" que são, na maioria dos casos, muito interessantes. E será presumivelmente este um dos pormenores que lhe asseguram o sucesso. Com data de ontem inseriu o que aqui se indica, no seguimento de outro antes publicado pelo Paulo Querido. A não perder, mesmo que possa merecer reflexão e divergência em relação a alguns detalhes. Mas vão lá ler sem hesitações!

Ramalho Ortigão nasceu há 167 anos

Faz hoje 167 anos que, em 1836, nasceu no Porto o escritor Ramalho Ortigão. A rua que na cidade carrega o seu nome em placas fixas nos topos não tem mais de 100 metros de comprimento. Mas dá para a Avenida dos Aliados, logo em frente ao edifício da Câmara Municipal.

O Deco apanhou 4 jogos

Então vocês acham isto justo? Antes de mais o processo foi demasiado rápido, sem analisar devidamente todos os detalhes, sem auscultar testemunhas, sem pedir parecer ao professor Freitas do Amaral. Foi um julgamento à porta fechada, se calhar nem houve juiz, quem foi fez o que quis e lá vai disto. Então se a justiça pudesse ser assim rápida vocês acham que o processo Casa Pia ainda não tinha acabado? Não, de maneira nenhuma. Acham que o Dr Vale e Azevedo ainda não tinha voltado a presidente do Benfica? E já depois de ter sido julgado, ter cumprido pena, ter readquirido os seus direitos civis e políticos e votado para a junta de freguesia lá da zona dele

Se tivesse sido um gajo qualquer do Benfica lá estava o presidente dos pneus a dizer que estavam a levar o FCP ao colo não sei para onde. A gente, que até somos pesados para levar ao colo e que não gostamos! Colo foi o da mãe, não é de um marmanjo qualquer das secretarias ou da comissão de arbitragem. E agora nós! Então podemos dizer que estão a levar o Estrela da Amadora ao colo? Só se for para a segunda divisão! Se fosse antes podíamos dizer que quem era levado ao colo era o Alverca, onde começou o negócio das recauchutagens, mas na Taça. Mas quem os levou ao colo, ontem, foi o Vitória de Setúbal.

23 de novembro de 2003

Os incendiários da estrada

Quando os incêndios dispararam, no Verão passado, toda a gente estava de férias. A começar pelo governo, pela oposição e pela Assembleia da República. Todos tiveram dificuldades em perceber a situação e tarde se voltaram para ela. Não revestia, naturalmente, a importância da inauguração de um qualquer estádio de futebol. Mesmo que fosse apenas para que, para já, se treinasse o ministro Arnault, como hoje aconteceu no de Faro e Loulé. Alguém disse mesmo que as consequências dos incêndios tinham sido irrelevantes, apenas um reduzido número de pessoas tinha perdido a vida. A grande maioria continuava felizmente viva.

Agora, sem a divulgação dos resultados dos milhentos inquéritos em que somos pródigos, pela calada e à má fila, o governo proclama que os culpados são os incendiários da estrada, vulgarmente conhecidos por automobilistas e perseguidos pela brigada de trânsito por excesso de velocidade.

As circunstâncias em que os condena são transparentes e normais, à semelhança de tudo o que usualmente faz. Só que, desta vez, estranhamente, dou por mim a aceitar a situação e a manifestar-me solidário com ela. De facto somos os culpados, e incluo-me porque também ando, às vezes, nas estradas. Outras, como a maioria, limito-me a engrossar as filas de espera e a fazer gincana no meio das obras permanentes que a Brisa vai tentando realizar para nosso conforto e comodidade. Enquanto pagamos as portagens por inteiro.

Portanto a responsabilidade está bem atribuída. Porque de facto as estradas andam muitas vezes pelo meio da floresta, esmagam insectos, assustam animais, derrubam árvores, pintam de negro a serra d’Aire e Candeeiros. Criam condições para que ocorram acidentes, haja mortos e feridos, se percam viaturas com prejuízo para os proprietários e para as companhias de seguros. Com que benefícios? Apenas o do ministro das obras públicas cortar uma fita e percorrer o troço inaugurado sem radar a controlar-lhe a velocidade.

Depois uns cêntimos de aumento no preço dos combustíveis nem aquecem, nem arrefecem. Assim por assim, já estamos habituados a que isso aconteça com tudo. E, pelo menos, no preço dos combustíveis não somos de certeza os últimos da Europa. Era o que faltava, pelintras!

Adeus amiga

Há dois dias atrás, quando a tarde se desenrolava ainda da bruma sombria da manhã, ei-la que veio. Como quase sempre vem, especialmente quando sabe que a esperam. Sorrateira, pé ante pé, traiçoeira e esquiva. Como na manhã em que, finalmente, irá regressar o nosso senhor, el-rei D. Sebastião, chegou e partiu envolta no manto de nevoeiro, sem que ninguém desse por ela. Visíveis, apenas os resultados dolorosos, trágicos, irreversíveis.

E hoje, na tua adquirida tranquilidade, marejaste de lágrimas os olhos amigos de quem te acompanhou. Desceste à terra repousada, sem dor e sem sofrimento. Aqueles que te sobraram pela vida fora. Nada será como dantes, mas a tua memória fará com que tudo continue a ser como dantes. Mais do que ninguém, tu o mereces. Adeus amiga, até sempre!

22 de novembro de 2003

O sarilho do Carrilho

Haja respeito! O sarilho é o sarilho vulgar, comum, conhecido de todos. Substantivo masculino que, em sentido figurado, pode querer dizer roda-viva, giro, complicação, situação difícil, barulho, briga, confusão, desordem, rixa, trapalhada, dificuldade. Isto a fazer fé no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, 6.ª edição.

Mas Carrilho não! Carrilho é nome próprio. Se não fosse, era também substantivo comum e poderia querer dizer sabugo da espiga de milho, o mesmo que carolo, bochecha, face, ainda a fazer fé no mesmo dicionário. Mas pertence a pessoa, com bilhete de identidade, passaporte, habitando residência urbana, com número de polícia e porta para a rua.

Nem mais. É apelido do professor doutor Manuel Maria, comentador de televisão ainda com pouca experiência mas cujo futuro promete, deputado, cronista, redactor de cartas abertas, figura da sociedade que frequenta os jantares do casino e ex-ministro da cultura que reduziu o Dr Santos Silva a presidente de banco depois de ter acumulado durante algum tempo com a tristemente célebre Porto 2001, capital europeia da cultura.

E qual é o sarilho? O professor doutor é um homem moderno, toda a gente o sabe, dedicou-se às novas tecnologias, adquiriu um computador lá para casa, para se entreter nas horas livres – que são poucas, a vida social intensa toma-lhe o tempo todo, às vezes anda numa roda-viva, chega a parecer o Zé Castelo Branco sem a história daquelas jóias todas que lhe apreenderam no aeroporto – e navegar, como se diz, pela internet que é uma coisa que se não admite passar-nos ao lado. Tanto mais que mesmo o Sr Bill Gates, que já não precisa muito, vai aumentando a fortuna à custa dela e até os miúdos se perdem no seu interior, por vezes em sítios e com coisas que não deviam.

Construiu um “site” – quer dizer, o aspecto não é bem de trabalho feito por professor de filosofia, mas pode até ser uma vocação tardia e acredita-se, pronto. O aspecto gráfico é cuidado, as fotografias podiam ter mais luz, serem a cores, as rugas até lhe dariam um ar mais distinto, nem a Bábá havia de se importar com isso. A página de acolhimento acho que não é feliz com a alusão ao catastrofismo, o professor Marcelo não havia de gostar se soubesse, mas parece que ele perde o tempo é com mensagens nos telemóveis, de internet nem peva!

Quanto ao conteúdo o professor é, ao contrário do que parece, muito menos meticuloso que o Sr José Mourinho ou o Eng Fernando Santos que até nos treinos anotam tudo. Gastam cadernos atrás de cadernos e esferográficas atrás de esferográficas. Tem de cuidar mais desse aspecto, mesmo que depois não ligue nada ao que aponta. As pessoas gostam de ver que anota todos os compromissos, as datas dos aniversários dos familiares e amigos, as festas de benemerência no casino, a próxima vacina do caniche no veterinário, a ida ao cabeleireiro para ajeitar o cabelo e disfarçar as brancas.

As crónicas estão bem escritas e aquela sobre as pontes recomendo-lhe que a envie ao Instituto das Estradas onde poderá dar jeito. Ou eles evitam que caiam mais ou caiem todas de uma vez, então agora que nem o seu partido é governo nem o Dr Coelho é ministro para ter que se demitir. Ter, vírgula, que se da outra vez se demitiu foi porque quis, ninguém o obrigou. E os Drs Isaltino e Cruz já lá não estão porque não quiseram, o primeiro viajou a visitar o sobrinho da Suiça e o segundo a acompanhar a filha que foi estudar medicina para o estrangeiro. Mas a produção é reduzida, a dar razão à Dra Manuela e ao Eng Ludgero. É preciso aumentá-la para ver se apanhamos a Grécia, antes que a Eslováquia nos passe. Vá vendo o que produz o Dr Pacheco, aquela cabeça não para, de um lado para o outro, sempre a emitir opinião, sempre a escrever coisas. E já viu o que ele sabe, só do Dr Cunhal?

As intervenções afinal é uma intervenção com seis meses. É pouco professor, é pouco! O Dr Alberto João, num governo de aldeia, faz muito mais, mesmo com a poncha. E por cá o Dr Guilherme também se não cala, farta-se de falar, está sempre na primeira fila. É preciso insistir, sacrificar-se um pouco mais, reduzir as saídas à noite, declinar convites para algumas passagens de modelos. Custa não agradar a todos os que têm a gentileza de o convidar, mas tem que ser.

Quanto ao currículo, é curto para quem quer chegar longe e depressa. Está muito sintético! Então já imaginou a comparação com a da Sra ministra do ensino superior? Não sei quantas páginas, parece que vai ser publicado pelo Círculo de Leitores em três volumes, já viu a tiragem? Vai ser “best seller” de certeza. Reveja-o, aumente-o, mais uns colóquios, uns seminários internacionais mesmo subsidiados – desde que a Bayer não esteja metida nisso! – umas condecorações, mais medalhas, outras mordomias. Das ex-repúblicas soviéticas, arranjam-se com facilidade na origem e já encontrei algumas até na feira da Vandoma. Venha ao Porto à procura delas, tem é que vir cedo para não encontrar tudo muito escolhido.

Os livros publicados, está bem, não se lhe pode exigir que produza o mesmo do camarada Saramago ou do Dr Lobo Antunes. Com esses tem a caneta que correr atrás das idéias e às vezes fica para trás. Mas está bem, como homem tinha que escrever um e já lá está mais de uma dúzia. Já plantou a árvore? E já fez o filho como aquele Morgado, deputado do CDS?

As entrevistas, ai as entrevistas! É uma entrevista, também com seis meses de idade, o que é pouco. Ponha-se em bicos de pés, apareça nas televisões, diga coisas. Contacte as redacções dos jornais e os produtores de rádio. Nem que vá ao sábado à tarde para a TSF ser entrevistado pelo Sr Tavares Teles, desde que lhe diga sempre que quem vai ganhar é o FC Porto. Faça declarações ao Record, antes e depois dos plenários da assembleia. Diga que os franceses empolaram aquilo que ainda agora, na euforia da vitória, os nossos rapazes fizeram depois da eliminatória com eles. E seja pessoal, satisfaça a curiosidade feminina. Diga a cor dos olhos, a altura e a medida dos sapatos. Revele as marcas de roupa interior que usa, com o Sr José Castelo Branco, tudo Gucci. Ocupe as colunas do Sr Carlos Castro, vista Rosa e Teixeira, mesmo de saldo, não importa. Ponha gel no cabelo sem lhe dar esse aspecto muito penteadinho, a revelar alguma irreverência.

E ponha um contador no seu “site” para ver os resultados. Vai ver como as coisas melhoram. Ande para a frente, aqueles gajos do largo do Rato são uns tótós, vai passar-lhes à frente com uma perna às costas. Eles ainda estão na época dos livros da agência portuguesa de revistas, são poucos os que já se aventuram na erudição da D. Margarida Rebelo Pinto!

Razão tinha eu, Dr Santana

Razão tinha eu, Dr Santana. Razão tinha eu quando aqui, há menos de um mês, puxava pela pinha a avisar quem quisesse ser avisado, dizendo que os comentadores de televisão eram mal pagos. E que, por isso, tinham de socorrer-se de actividades subsidiárias, a tempo parcial, sem garantia de descontos para a segurança social, para comporem o orçamento e, de vez em quando, comprar um fatito novo no Rosa e Teixeira, mesmo que seja nos saldos. E aí está, no seu caso pessoal, frontalmente a confirmação: viu-se impedido de participar nas reuniões da Câmara Municipal – de que é presidente por biscate – por força das obrigações que lhe impõe o contrato assinado com a SIC do Dr Balsemão.

A atitude do Dr Balsemão revela também a sua desumanidade e o seu espírito déspota e mesmo esclavagista. Fico até sem compreender como um tio Patinhas daqueles foi capaz de, mesmo nos tempos das vacas gordas, ter oferecido aquele Honda vermelho à Catarina que, entretanto, se passou para o João Gil e para o serviço público. E depois a coragem que teve de fazer o que fez com o Dr Rangel e com a senhora, mandando ambos para o desemprego com um impresso assinado para se habilitarem ao respectivo subsídio. Vá lá que o Dr Rangel teve a sorte de rapidamente arranjar novo emprego, ainda que mal pago, na estação do serviço público e com ele lá foi aguentando sozinho as despesas da casa. Mas por pouco tempo também que o Dr Sarmento, tendo menos idade e menos dinheiro que o Dr Balsemão, tem pelo menos o mesmo mau feitio. É ouvi-lo quando fala, com a fúria até se atrapalha a alinhar as palavras.

Então agora o Dr Balsemão não podia dispensá-lo para ir às reuniões da Câmara? Então isso não é má vontade, fazia-lhe alguma diferença? Só lhe falta, daqui a pouco, julgar-se no direito de o proibir de ir às docas beber um copo e piscar o olho às aves de arribação que a noite por vezes guia até lá. Se fosse a si, Dr Santana, mandava já colocar um grande painel a denunciar a situação, na marginal, logo quando se sai de Lisboa, à semelhança daqueles que o Dr mandou espetar na Rua da Madalena, por causa dos buracos. Parece que é o sítio que lhe fica mais próximo da Quinta da Marinha, não é?

21 de novembro de 2003

O primeiro ministro vai ao professor Karamba – II

Entrou na sala pequena e obscura, cheirando a bafio, com uma secretária ao fundo, sem idade e sem estilo, à qual se sentava o professor. Por detrás deste a parede, coberta por um reposteiro de tecido velho e debotado, ameaçando despegar-se e cair. Em cima da secretária uma inevitável bola de cristal – vidro vulgar de uma fábrica da Marinha Grande – como nos livros de bruxarias e nos espectáculos do Sr Luís de Matos. Depois baralhos de cartas – nos quais não viu nenhuma manilha, por isso nem davam para a sueca – de vários feitios e desenhos, conchas, búzios, cabeças de alho – deixadas como oferta pelo Sr António Oliveira antes de seguir para a Coreia com a selecção nacional de futebol – e outros adereços cujo nome desconhecia e cuja função ignorava.

Cumprimentou, que era bem educado, tinha recebido lições do grande educador, o camarada Arnaldo Matos. O professor sussurrou qualquer coisa que não percebeu mas que certamente teria sido a resposta. Depois disse-lhe que já estava fora do seu horário mas que a sua função era resolver os problemas das pessoas e que então lhe dissesse ao que vinha. Assim, de gola subida, todo embuçado, como se se preparasse para, pela madrugada, descer aos paços do concelho e proclamar a república.

Mas, para vires assim – o professor tratava toda a gente por tu, nada de igualdades como tinham querido os bolcheviques que, mesmo desaparecidos, o Dr Pacheco Pereira continua a combater feito D. Quixote – deves estar metido em boa. Bem, mas para ele não havia impossíveis, tanto assim que numa das paredes laterais do consultório tinha um quadro pendurado onde se dizia: “os problemas difíceis resolvem-se na mesma hora, os impossíveis na hora a seguir”. Referiu a sua muita e prolongada experiência, de África à América, tinha sido consultado pelo Sr Bush por causa das armas de destruição maciça no Iraque, o homem não dispensara o seu conselho. E, como vês, a guerra ele já disse que acabou, os outros é que ainda não sabem!

Tens problemas de amor, as garinas não vão na tua, os negócios não marcham, é a família, os filhos na passa? Não te sai o totoloto, é alguma coisa de inveja, – se for até que podes pagar bem, pensou e não disse – mau olhado. Anda, senta-te, fica à vontade, conta os teus problemas para os analisar com toda a precisão. Os primeiros resultados são garantidos logo após a primeira semana e feita a boa cobrança do cheque – os caloteiros são do caraças! – mas se pagares em dinheiro pode-se abreviar tudo um pouco.

A custo falou, primeiro lentamente, depois mais confiante soltou-se-lhe o verbo. Estou lixado, andam a seguir-me, metem-me folhetos do Continente na caixa do correio junto com cartas anónimas. Ando apavorado, tenho pesadelos durante a noite, mesmo quando digo que durmo como um anjo. Vejo pontes a cair, ajudantes a fazerem favores uns aos outros, outros com falta de confiança a recomendarem aos sobrinhos que depositem as economias na Suiça. Apavoro-me de todo com receio de perder o emprego, tenho filhos a estudar sem cunha metida ao ministro, ainda lhes cancelam a matrícula, agora que as propinas aumentaram.

O professor ouviu, a mão pousada sobre a bola de cristal, a vestimenta africana no corpo, o barrete enfiado na cabeça, tapando-lhe as orelhas do frio de Novembro. E disse, o assunto é bué de complicado, não está fácil, vou ter de estudar esta noite, vamos a ver se o tempo chega. Mas não te preocupes, vai para casa, toma uns valiuns à maneira – eu já te passo a receita! – vais de facto dormir como um anjo. Deixa ali o cheque na bandeja, ao portador e com tecto, não há recibo que não sou o canalizador daquela Dra Manuela Leite, já ouviste falar? Leva um cartão, está aí em cima da mesa, tem o número do telefone e o horário das consultas, liga daqui a uma semana, já te digo o resultado.

Saiu como entrou, encafuado no disfarce, descendo as escadas colado à parede. Saiu para a rua depois de ter olhado para os lados a ver que ninguém passava. Estugou a passada até ao carro do assessor onde entrou como se tivesse feito a preparação dos GNR que foram ajudar à liberdade do Iraque. Suava em bica apesar dos onze graus que a meteorologia, funcionando mal, noticiava. Por entre dentes disse apenas e rapidamente: vamo-nos embora!

O Porto aqui tão perto...

O Porto aqui tão perto, como na canção de Sérgio Godinho. Numa tarde infernal de sexta-feira, chuvosa, com o trânsito mais caótico do que em dias secos e escorridos, mesmo de Outuno. O regresso a casa, para o fim de semana, vai ser difícil para quase toda a gente, porque nem os transportes colectivos se movem no meio da trapalhada.

Devem estar os autarcas, sejam de que partido forem, a lembrarem-se das suas falsas promessas eleitorais de há dois anos. Que, ao menos, estas situações contribuam para que não sejam de novo eleitos para nenhum cargo

A discussão do orçamento de estado

Ouço, sem lhes prestar atenção, que felizmente não tenho pachorra para isso, as intervenções dos deputados na apregoada discussão do orçamento de estado para 2004. Que, como se sabe, é um monólogo em vários actos, mediocremente representado por actores amadores sem vocação. Mas cujos “cachets” são desgraçadamente pesados para o bolso de quem desconta. Que não têm porte decente, tropeçam nos adereços e estatelam-se nos espectadores que se sentam nas cadeiras da frente, amarrotando-lhes os fatos e sujando-lhes a graxa dos sapatos.

A Dra. Manuela Leite, diz-se perplexa quando pronuncia o seu discurso desinteressante, monocórdico, afirmando que os outros fizeram tudo mal, não estava ela para os ensinar, agora podemos todos confiar, vai-nos melhorar o nível de vida, não garante é quando. Um lado da bancada aplaude, grita eufórica, atira as esferográficas ao ar e salta nos lugares por causa da cantiga do “quem não salta...” que se ouve por aí. A outra parte da bancada ri desvairadamente, bate com os pés no soalho, parecem equinos a dar com as ferraduras no chão da estrebaria, impacientes por causa das moscas que lhes vão esvoaçando em torno das orelhas. Que abanam para as enxutar para a longe.

A Dra. Manuela Leite continua, atribuindo as culpas de tudo à mãe do Dr Salazar, sacana da pacóvia, porque haveria o filho de ter ido para Coimbra estudar e chegar a dono do país. Poderia ter feito a exame do segundo grau, com distinção e tudo, poderia ter dado um bom marçano numa merceria do Porto, onde o patrão lhe daria comida, dormida, roupa lavada, trabalho e porrada se fosse preciso. Até poderia ter casado, feito filhos, – ao menos um como aquele Morgado do CDS que a Natália Correia disse ter sido capado depois do acto – até mais tarde estabelecer-se por conta própria.

Quanto a ideias, estamos conversados: nem a mais vazia, nem a mais inútil, nem a mais absurda. Nada! Nem de um lado nem do outro. Apenas sabem atacar-se uns aos outros e retribuir-se. Quando o deputado A, por outras palavras já se vê, diz que o orçamento é uma merda, responde-lhe o deputado B não para refutar a afirmação mas para lhe dizer que não apontou alternativas. O deputado C, sobre o orçamento, diz que ninguém sabe se o “leader” da oposição daqui a três anos será o mesmo e se terá a oportunidade de se apresentar a eleições nessa condição. O que é, como se compreende, definitivamente importante para a redução dos impostos, para o aumento das pensões e para a redução da inflacção.

Quando o orçamento é aprovado uma parte da bancada cala-se e baixa as orelhas: é a oposição. A outra aplaude freneticamente, como se se risse às gargalhadas das graçolas que acabou de contar: é a maioria. Continuamos fritos!

Vamos lá à sexta-feira!

Bem, vamos lá à arrancada difícil, quase a frio, desta sexta-feira a caminho de um fim de semana. A noite, lenta e disfarçadamente, foi cedendo o lugar a um dia cinzento, aparentemente coberto por neblina, envergonhado e comprometido. Algures, em Lisboa, a Catherine Deneuve de que se fala, recolheu a penates, ao volante de um dos seus carros de alta cilindrada, sem ter tido sucesso nos seus propósitos nocturnos. Os homens, definitivamente, estão cada vez mais difíceis. Dizendo-se que há sete mulheres para cada um deles, poucos dão conta das que lhes pertencem e ainda menos se queixam de que não encontraram as sete a que têm direito.

As temperaturas desceram nos termómetros, digitais ou de mercúrio, e a chuva sorrateiramente foi encharcando pisos de ruas e passeios até formar pequenos rios que correm pelas sarjetas. O fim de semana não promete grandes passeios, com idas à praia e banhos de sol. Ou almoçaradas de suculentos pratos regionais, em quantidade excessiva, com vinhos tintos de estalo a acompanhar, para o empanzinanço.

Folheio os jornais, não todos, e afinal está tudo bem, tudo decorre normalmente. Lá por fora como cá por dentro. Lá por fora os atentados que fazem cada vez mais mortos e mais feridos tendem a comparar-se à teimosia do senhor Bush, confluindo. Este prossegue aquilo a que eufemisticamente chamam “visita oficial” a Inglaterra, transportando-se numa fortaleza com motor e quatro rodas, mais pesado e mais difícil de destruir do que os blindados que, para libertar o povo iraquiano, ele enviou para o Iraque. Não sai à rua, diz-se que se dá mal com aquele nevoento ambiente londrino onde o tempo apenas melhora no conforto do Selfridge Parece que padece de asma e de outras doenças que os médicos não diagnosticam. No entanto, debalde e ingloriamente, cem mil pessoas concentraram-se ontem em Trafalgar Square e desfilaram por diversas ruas da cidade. Para o vitoriarem, para o aplaudirem, para lhe acenarem com pequenas bandeiras de papel. Alguns até para o aliciarem a preencher uma proposta para sócio do Arsenal e a ceder, definitivamente, aos encantos do futebol.

Por cá, como sempre, o país vai morno, modorrento, com as pessoas a queixarem-se de frio sem saberem que temperaturas se vão já sentindo por Moscovo. No parlamento discute-se o orçamento de estado. Tudo em letra e em tamanho pequenos: o parlamento, o orçamento e o estado. A discussão é para cumprir calendário, o resultado já é conhecido e nem se espera que a maioria, no final, venha a provocar quaisquer estragos nos balneários atirando com o primeiro ministro ao ar, na alegre celebração da vitória. Nem a Dra. Manuela Leite se anima e desata aos gritos, vociferando com uma energia que não é própria de quem já passou a menopausa. Como se tivesse ingerido suporíferos continua, com sonolência, a insistir em que dois e dois são seis. Com a mesma discreta convicção, para se não dar por ela, com que o Eng. Cravinho persiste na ideia, recorrente, de que dois e dois são cinco.

O Sr. José Manuel Fernandes continua em funções, como cronista oficial da república de Pacheco, pago por entidade privada, escrevendo aquilo que lhe mandam. Submisso no porte, correcto na gramática, que a Dra. Edite Estrela está à espreita. Em Lisboa o presidente da câmara vai escrevendo crónicas para jornais desportivos, pagas à linha, que ele vai discretamente publicitando em cartazes que espalha pela cidade a que só falta a sua esfíngie. No Porto o presidente da câmara continua a opor-se ao presidente do fcp e torce para que o boavista, este fim de semana, acerte as contas. Nos intervalos aparece em fotografias sentado à frente de um computador, aprendendo como se constrói um blogue. E dizem que faz progressos.

Pelo país, de alto a baixo, nevoenta, a paisagem continua. A Brisa aproveita para aumentar as portagens nas auto-estradas e a cobrá-las inteiras, para além das vigarices das obras permanentes e das filas onde os automobilistas perdem horas a fio e enterram a paciência tocando desesperadamente as buzinas. É bom que assim seja, não desejo, por mim, que o Sr. Melo possa meter ao bolso menos de oitocentos em cada mil escudos que pago à passagem por Grijó. Eu e os outros, independentemente da opção política, religião, raça ou nacionalidade.

Isto está tudo tão bom, promete tanto, que vou emigrar.Vou-me embora para Pasárgada como Manuel Bandeira, que já foi há muito tempo. Lá sou amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero na cama que escolherei.

20 de novembro de 2003

O treinador José Romão estava lá

Há dois dias, como se sabe, a selecção portuguesa de futebol de sub 21 deixou bem assinalada, em França, a alegria eufórica com que festejou o apuramento para o europeu do próximo ano. Desmancha prazeres, pessoa contida e ponderada, o treinador José Romão insiste em dizer que a festa não foi nada de muito ruidoso. E, para o ilustrar, vai “desarrincando” mimos desta envergadura:

Em Portugal os balneários são melhores. Vocês sabem como festejam os campeões portugueses. Lá não havia mais de 10 metros quadrados de espaço para os jogadores extravasarem a alegria.

O que, traduzido do francês do cómico Zé Romão, quer dizer mais ou menos isto:

Em França, que é um país atrasado dirigido pelo déspota do Sr. Chirac, os balneários são uma merda. Apesar disso vocês sabem como nós, comedidos e responsáveis, comemoramos as coisas quando ganhamos, o que é frequente. Agora lá nem havia espaço para os jogadores tirarem as chuteiras e as cuecas.

O Bruno Vale quase tocava com a cabeça no tecto. Ao pegar num dirigente ao colo este bateu com os joelhos e os pés no contraplacado.

O Bruno Vale, que cresceu pelo caminho, chegava com a cabeça ao tecto. O espaço era tão apertado que ele teve de pegar num dirigente ao colo e elevá-lo acima da cabeça. E este, coitado, não se equilibrou e ficou de cabeça para baixo. Foi quando bateu, sem querer, com os joelhos e as patas no tecto.

Só caíram quatro ou cinco placas...

Só caíram quatro ou cinco placas... só que eram grandes...

Os armários, as sanitas e as torneiras ficaram intactas.

Os armários ficaram no sítio, perfeitamente intactos. Quando muito tirou-se-lhes o que tinham dentro e deixou-se esquecida alguma seringa já usada e sem préstimo. Nem sequer foram afastados das paredes onde estavam encostados. Nas sanitas que foram utilizadas os jogadores tiveram o cuidado de descarregar os autoclismos e usarem as piassabas. Em Portugal também já aprendemos a usar estas coisas. Ninguém desmontou nenhuma torneira, quando muito pode ter ficado uma ou outra aberta, mas se as fecharem elas deixam de correr. Os franceses não sabem disso?

Afinal a America’s Cup foi apenas um pretexto!

Acabo de ouvir, no noticiário da TSF, declarações em que o inimitável ministro Arnault mais ou menos teria dito de forma liminar: a cidade de Lisboa precisa de uma intervencão urgente e de grande envergadura na sua zona ocidental. E que nesse sentido era preciso a apropriação dos terrenos da Docapesca, que foi encerrada. A possível selecção da cidade para servir de base às provas da America’s Cup, como tem sido publicitado, foi apenas um pretexto.

A TSF não costuma dedicar grandes espaços a intervenções humorísticas e surpreendo-me que o faça, numa das raras vezes em que isso acontece, logo pela manhã. Melhor seria que fizesse a divulgação prévia de forma a sintonizarmos aquela emissora e a rirmo-nos todos. Tão tristes, deprimidos e carecidos de riso andamos.

Quanto ao ministro Arnault a questão é diferente porque já se lhe conhecem as aptidões para as peças cómicas. E quando o mesmo decidir tomar-se a sério em relação a essas aptidões, como a Dra. Odete, bem podem acautelar-se os portadores de carteira profissional, como o Sr. Camilo de Oliveira.

Se os cómicos credenciados do país dispusessem já de uma ordem que os defendesse eu era mesmo capaz de sugerir que o respectivo bastonário saísse a terreiro. E proclamasse que os cómicos que há são mais do que suficientes para as necessidades do país e do governo. E que, mesmo nas galerias, toda a gente se pode rir com aquilo que há.

A única nota trágica das declarações do ministro Arnault foi o facto de referir que isso da America’s Cup foi apenas um pretexto. Confessando indirectamente que tinha havido recurso a uma patranha e que mentira. Mas no fim isso já é tão vulgar que ninguém já dá por ela. E, como ele disse da cátedra da sua sapiência, os terrenos da Docapesca são mais importantes que sete barcos de pescadores.

George W. Bush vai a Londres dar conselhos à Europa

Este é mais ou menos o título que o jornal Público insere na primeira página da sua edição de hoje, relativa à visita de George W. Bush a Inglaterra. E logo ele, que tem andado tanto e tão mal aconselhado lá pelas terras do tio Sam. Parece que as únicas coisas certas que lhe disseram foi a profundidade média a que se encontra o petróleo no Iraque e o custo médio de exploração por barril.

19 de novembro de 2003

A dolorosa despedida da vida

Hoje, numa peregrinação dolorosa e moralmente inalienável, tive de me deslocar, pela primeira vez na vida a um sector do IPO onde doentes do foro oncológico, em fase terminal, já sem hipóteses de que alguma coisa possa ser feita para diferir o galope da doença, aguardam pacientemente que o coração lhes falte.

Por um lado, num país em que a saúde é medíocre, saudam-se os cuidados postos no funcionamento de uma tal unidade. A preocupação com a tranquilidade, com o bem estar, com a dignidade humana. Tantas vezes esquecida ou atropelada quando se lida com seres saudáveis que fazem parte do nosso quotidiano.

Por outro lado a experiência dolorosa de olhar nos olhos quem se vai despegando da vida aos bocadinhos, embora muito rapidamente. E a convicção que nos fica que a despedida final está apenas presa por um fio frágil que tão só uma brisa leve chega para quebrar. Na próxima hora, no próximo dia, na próxima semana!

Coisas do futebol que não podem ser

De forma brilhante a selecção portuguesa de futebol sub 21 eliminou ontem a França na conquista de um lugar na fase final do europeu do próximo ano. O facto assume ainda maior relevância sabendo-se que Portugal iniciou a segunda mão da eliminatória em desvantagem, depois de dias antes ter perdido em casa o jogo da primeira mão. Foi bafejado pela fortuna? Naturalmente, como sempre acontece com os vencedores, que os não há sem sorte. E esta terá, ocasionalmente, começado por uma asneira do melhor jogador francês que acabou expulso – e bem expulso! – por ter agredido a pontapé um adversário.

Depois foi o suplício do prolongamento e a roleta das grandes penalidades onde a felicidade joga sempre cartada decisiva. Não temos de que nos queixar. Fomos felizes mas é também certo que a equipa trabalhou para que a sorte a bafejasse.

Depois, rapidamente, sem ainda ter sequer abandonado o estádio, o grupo virou de sub 21 a super vândalo. Destruindo, ao que foi noticiado, parte do balneário que utilizava. É lamentável a ocorrência? Claro que sim!

Mas, pior do que isso, inqualificável e inadmíssivel, foi a posição assumida pelo treinador que disse comprender a situação. E que os rapazes o tinham feito com a alegria da celebração da vitória, até porque o espaço do balneário era exíguo. Então compreenderá o treinador que a rapaziada o esfaqueia a ele e aos ajudantes, na euforia da vitória? Compreenderá ainda que os mesmos jogadores dispam o dirigente que acompanha a comitiva e lhe queimem a roupa e os sapatos e o vergastem? Compreenderá que, à chegada, agridam a pontapé todos os jornalistas que os aguardem? Que partam as tíbias das namoradas à canelada e lhes trinquem as línguas quando as beijam? Que cheguem à freguesia e apedrejem o presidente da junta que lhes preparou a recepção e o beberete?

Palavra de honra, Sr. José Romão! O senhor que até fala com certa desenvoltura quando se trata de falar do árbitro. Como é que, sendo assim, não consegue raciocinar nada de jeito? Não dá para compreender pois não?

Mais 300 novas vagas em cursos de medicina

Este país é o país do faz-de-conta onde viram a luz os senhores António Maria Lisboa, Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas. Que, parecendo que não, lhe incutiram o gosto surrealista pelo qual pautua a sua vida colectiva. As pessoas são presas por terem cão e por não terem. Presas por se presumir que são criminosas e soltas por se presumir exactamente a mesma coisa. A afirmação e o seu contrário são igualmente válidos, não há verdade nem mentira.

O país não tem um sistema de saúde que não seja aquele de que o ministério faz propaganda. Com anúncios pagos nos jornais, a preço elevado. De resto, não funcionou e não funciona. O senhor ministro e os seus serviços não o sabem porque não conhecem o país ou porque, concientemente, são mentirosos

Por todo o lado, como se sabe, faltam médicos. Entretanto vão-se empregando a lavar vidros de janelas ou na construção civil médicos que nos chegaram de longe. Dificulta-se a entrada no sistema de médicos espanhóis que, indiscutivelmente, nos fazem falta. Mesmo nas grandes cidades, como Lisboa e Porto, milhares de utentes do sistema não têm atribuído médico de família, nem podem aspirar a tê-lo num prazo razoável. Na província, como ainda se persiste em dizer, a situação é ainda muito pior. As populações estão envelhecidas, carecem de mais e melhores cuidados e chegam a não ter nenhuns. Nem cuidados, nem médicos!

Mas quando esta manhã a ministra do ensino superior anunciou a criação de 300 novas vagas para cursos de medicina, o Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos sobiu para a cadeira e gritou que é um exagero, que não é preciso nada disso.

Porquê? Acaso sente o Sr. Bastonário que os membros do organismo que dirige vão, com mais médicos no mercado, perder prerrogativas, mordomias, privilégios e honorários? Especialmente honorários? O Sr. Bastonário, fica à vista de todos, também não faz a mínima ideia do que seja o país. E o pior é que nem quer fazer!

Albert Camus, 19.11.1957

19 de Novembro de 1957

Caro Monsieur Germain:

Deixei extinguir-se um pouco o ruído que me rodeou todos estes dias antes de lhe vir falar com todo o coração. Acabam de me conceder uma honra excessiva, que não procurei nem solicitei. Mas quando me inteirei da notícia, o meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para o senhor. Sem si, sem a mão afectuosa que estendeu ao garoto pobre que eu era, sem os seus ensinamentos e exemplo, nada de tudo isso teria acontecido. Não imagino um mundo com essa espécie de honra. No entanto, constitui uma oportunidade para lhe dizer o que foi, e ainda é para mim, e assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que sempre empregava ainda se encontram vivos num dos seus pequenos alunos que, apesar da idade, não deixou de ser o seu grato estudante. Abraço-o com todas as minhas forças.

Albert Camus


Camus nasceu em 1913 e morreu em 1960 num acidente de automóvel, com apenas 47 anos de idade. Em 1957, tinha 44 anos, foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. A carta que se transcreve acima escreveu-a ele, ao seu antigo mestre-escola, faz hoje exactamente 46 anos, depois de ter sido informado de que tinha sido galardoado com o Prémio Nobel.

Curta e singela esta carta é uma lição e um exemplo. Não precisava, de facto, de ser mais longa para dizer tanto como diz. E para revelar a humildade grandiosa de um quase jovem a quem, como diz, haviam concedido honras excessivas.

Que longe vão, hoje, dias e carácteres desta envergadura. Quando a mediocridade anda a par com a vaidade, a arrogância, a inutilidade e o vazio integral de um Big Brother gigantesco.

Pequei: cometi uma enormidade

Pequei de facto, cometendo uma enormidade sem medida e sem perdão. Quase cheguei a pensar que ia ser excomungado. Escrevi uma mensagem que depois enviei a um conjunto de “bloggers”, após ter passado pelos seus próprios “blogs”, convidando-os a visitar o Placard. Mas fi-lo com correcção, sem insultar ninguém e sem me esconder no anonimato.

A maioria a quem dirigi o e-mail não me respondeu nem tinha que o fazer. Outros tiveram a gentileza de me responder e a amabilidade de aceitarem o convite que lhes fiz desinteressadamente. Até este momento um outro, cuja identificação propositadamente deixo na obscuridade, respondeu-me nos seguintes termos:

começa sinceramente a irritar, esta história dos convites para "percorrer"
blogues. Não chateiem pá! A blogosfera não serve para auto-promoções da
treta, não há paciência, não mandem mais estes convites, limitem-se a
escrever o que puderem, do que souberem, e o melhor que conseguirem, mas
façam-no em privado. Merda para os novos bloggers


De início, confesso, fiquei incrédulo. Depois ri-me e diverti-me imenso com a mensagem. Facilmente concluí que não frequentámos as mesmas escolas, não tivemos os mesmos professores, não recebemos a mesma educação e não tivemos as mesmas experiências pela vida fora. Ah!, e não temos o mesmo sentido de humor e de “fair play”. De forma que se não justifica a perda de mais tempo. Ponto final.

No correio que me chegou veio a resposta que um outro “blogger” deu a este irritadiço ser, de sua iniciativa e sem que, obviamente, lhe tivesse pedido socorro. Mas que naturalmente agradeço. Porquê? Porque afirma no essencial aquilo que eu, novato nestas andanças, sempre pensei. Que a blogosfera é um espaço comunitário, onde toda a gente pode circular livremente, em condições de igualdade, mantendo presente o civismo essencial que nos obriga a respeitarmo-nos a nós próprios para que saibamos respeitar todos os outros.

O primeiro ministro vai ao professor Karamba - I

O conselho veio-lhe directamente do assessor de imagem numa terça-feira, logo de manhã, ainda nem eram 11 horas, mal se tinha iniciado o forum da TSF sobre as pontes que iam caindo ao longo do IC19, logo depois de vistoriadas pelo Instituto das Estradas. Quase saltou na cadeira, de tão surpreendido, e inquiriu em voz alta: oh! homem onde raio foi você buscar essa ideia peregrina? Essa nem vinda do Dr. Garcia Pereira!

O assessor, em sussuro, recomendou-lhe que fosse discreto. Discreto porquê? Estamos sozinhos, ninguém está ao telefone, não há escutas. E daí, que houvesse, reagiria como os outros, já nem precisavam de fazer as transcrições. Sim, insistiu o assessor, mas V. Exa. sabe como são as coisas. Lembre-se do Sr. Procurador, Dr. Cunha Rodrigues. Por debaixo da alcatifa coçada e das tábuas de pinho já carunchoso do soalho havia microfones escondidos, à mistura com traças, pó de madeira, baratas e pontas de cigarros. E nunca ninguém soube quem os lá tinha posto. É como o segredo de justiça em relação ao processo da Casa Pia: ninguém o quebra e toda a gente sabe de tudo.

Pronto, está bem, concordo. Mas diga-me de onde lhe veio a ideia. O assessor aproximou-se-lhe perigosamente da orelha direita, podia sentir-lhe a respiração morna e o bafo cavernoso do tabaco, à mistura com um distante odor a colgate branqueador. Chegou a sentir receio de que se aproximasse demasiado e lhe fizesse cócegas.

E o assessor, muito baixinho, foi-lhe contando. Foi esta manhã a minha mulher enquanto eu, ainda de cuecas, – V. Exa. desculpe mas é assim, a gente, em casa, põe-se à vontade, temos as janelas fechadas, ninguém nos cusca – dava um jeito à barba, antes do duche. Foi lá no serviço dela, na escola que o Dr. Justino quer fechar para o ano, depois tenho de lhe pedir um favorzito sobre o assunto, mas adiante. Uma colega contou-lhe que a presidente do conselho directivo lhe dissera que a encarregada das empregadas de limpeza, nessa manhã, tinha encontrado nas camionetas do Barraqueiro uma amiga que é praticante – contratada a recibo verde – no ministério do Dr. de que, para já, não digo o nome. E que esta, em conversa com um terceiro oficial, fora informada que um motorista do chefe de gabinete do secretário de estado de que, para já, também não digo o nome, que este dissera que o Dr. X – vou passar a chamar-lhe assim, sabe como é, as paredes têm ouvidos! – lá tinha ido e que estava muito satisfeito com os resultados.

Oh! homem, realmente. Se eu não ouvisse nem acreditava. Mas está bem, traga-me um recorte do anúncio, bem dobradinho para ninguém sequer sonhar o que é, telefone a marcar, para tarde, quando já fôr escuro e tempo de lua nova, não quero ser identificado, nem sequer visto. Depois diga-me, vamos dispensar o motorista e não utilizamos o carro oficial que dá muito nas vistas, os batedores põem-se-lhe à frente com as sirenes aos gritos, quase a cem à hora. Claro, a segurança é menor, o risco aumenta, o desconforto do seu carro aguenta-se. É perto, é pouco tempo.

Às oito da noite o assessor bateu-lhe à porta do gabinete, esperou que o mandassem entrar, abriu a porta e chegou-se ao pé da secretária. Disse: podemos ir, já cá não está ninguém, a menina Andreia saiu agora mesmo a correr, tinha o namorado à porta com o carro em cima do passeio. A limpeza não é feita agora, só de manhã cedo, podemos sair à confiança.

Está bem, você estaciona o carro na rua, sob as árvores, a alguns 200 metros de distância e mantém-se ao volante, disfarçadamente. Faço esse percurso colado à parede, com a gola do sobretudo subida, a cabeça inclinada para o chão, seria um azar do caraças, ninguém vai aparecer e reconhecer-me. Vou parecer um conspirador dos tempos glororiosos da clandestinidade do Dr. Cunhal, nem eu sequer ainda conhecia o grande educador da classe operária, mas não há-de ser nada.

Chegado à porta esgueirou-se para dentro do prédio, antigo e degradado, com baldes de lixo no vão das escadas e estas empinadas, de madeira, sem iluminação, uma só lâmpada incandescente a cair por uma parede. Subiu ao primeiro andar, soturno e semi mergulhado nas trevas, com as tábuas do soalho a rangerem sob o peso do seu corpo e do seu cargo. Tocou à campaínha e mal esperou por resposta. Entrou. A recepcionista, de aspecto muito escandinavo recebeu-o e convidou-o a sentar-se. Disse-lhe: vou avisar o professor que o senhor já cá está, não vai demorar. E virou costas, sumindo-se pela porta em frente que teve o cuidado de fechar de novo.

Pensou: não é desajeitada de todo o raio da cachopa e não parece ter nascido na Nigéria. Puxou do recorte que o assessor lhe entregara, dobrado em quatro. Só leu as primeiras linhas que rezavam:

Gabinete de Astrologia
Prof. Karamba
“ O Fenómeno”
Astrólogo Médium Africano, 42 anos de experiência
FACILIDADES DE PAGAMENTO – PAGAMENTO APÓS O RESULTADO


A recepcionista voltou e disse-lhe: faça o favor de entrar. O professor espera-o. Guardou apressadamente o papel no bolso e lá foi. Bem espero que isto resulte, a gente tem de suportar cada uma!

18 de novembro de 2003

Parabéns ao Rato Mickey

O Rato Mickey, apesar dos anos passados e das arrelias que a Minnie, nesse período, lhe tem dado, completa 75 anos. E ganha direito a primeira página no jornal Público onde se apresenta em óptimo estado de conservação, exuberante, de riso aberto e a cores. Nem as biqueiras dos sapatos denunciam toda as topadas que, por estes anos fora, terá dado pelas pedras da vida. É obra, até porque nem o despreocupado Gastão, – não é esse, deixem o cão em paz! – com sorte sempre e em tudo, estará seguramente tão bem conservado.

Mas o Mickey está assim porque sempre foi assim: um optimista que ri com todas as coisas que a vida lhe traz. Sem preocupações de maior, que essas as deixa ao tio, sem tempo que lhe chegue sequer para acabar de contar as moedas em que vai tomando banho. A fantasia é a sua realidade e foi a de mais que uma geração. Sem necessidade de se ter armado em pistoleiro atravessando o Arkansas e sacando do revólver mais rápido do que a sua sombra. Sem necessidade de desencadear guerras de libertação nos países de África e sem ter que se alistar em corpos de mercenários ou da legião estrangeira. Sem se ter transformado em nenhum Papillon deportado e evadido da Guiana. Sem se importar muito com as fontes de energia e com o petróleo, fosse este da Nigéria, da Venezuela ou da Arábia Saudita. Deixando passar-lhe ao lado o Afeganistão e todo o partir pedra que por lá foi, e ainda vai. Preocupando-se com o que o rodeia, atemorizando-se com o que ocorre à sua volta – porque os bonecos também se assustam! – mas não sobrevalorizando a questão do Iraque, achando que não vale a pena ir para lá apregoar que vai pôr ordem naquilo tudo. Para depois não pôr ordem em coisa nenhuma.

Quanto ao resto do seu currículo, muito resumido, por causa de quem não tem muito tempo disponível para o ler, está aqui. Acompanhado pelos sinais essenciais de identificação. Mesmo que não haja risco de ser confundido seja com quem for, porque é único. Congratulations!

Os excessos da publicidade

Nós, portugueses, somos excessivos em muitas coisas. Talvez por estarmos habituados a ser sempre pequenos em quase tudo. Na União Europeia não estamos sequer muito mal posicionados, em 15.º lugar. Pena é, todavia, que para já aquele organismo só tenha quinze membros. Como se isso não bastasse, desde que sintamos alguma motivação, julgamo-nos logo capazes das maiores façanhas. Assim, de imediato, sem trabalho, por obra e graça do Espírito Santo.

Não poderiam as coisas ser diferentes quando se trata de futebol, uma coisa que, ainda por cima, apaixona e aliena multidões. Isso se viu ainda no ano passado, quando se realizou o campeonato mundial Coreia-Japão para que nos conseguimos qualificar. Ainda não tínhamos partido e já levávamos tudo à frente. No momento da partida o próprio primeiro ministro pediu que a comitiva – como sempre numerosa, à boa maneira, porque alguém paga – trouxesse a taça. Foi o que se viu. Tínhamos sido sorteados num grupo fácil, era canja, mais difícil era limpar o cu a meninos, ninguém se preocupasse. À frente da comitiva o Dr Madail parecia o Alexandre Magno, sem espada mas de peito atirado para diante. Começámos humilhados para acabar humilhados e vencidos. E regressámos a casa.

Corre-se visivelmente o mesmo risco com o europeu do ano que vem, cuja organização nos foi atribuída em resultado do trabalho empenhado do Sr. Carlos Cruz. Imperial, o Dr. Madail não foi capaz de resolver o contrato que havia com o seleccionador, o Sr. Oliveira. Este, que tem filhos menores e família para sustentar, meteu-se em copas e ficou a aguardar. E continua. Até que um dia destes, pela calada da noite, da mesma maneira que viajavam os deputados fantasmas, o imperial Dr. Madail se decida por assinar o cheque e pagar-lhe o que ele reclama.

Mas, mais do disso, interessa-me agora o europeu de sub-21, para que não conseguimos o apuramento directo, no grupo a que pertencíamos. Fomos repescados e temos que disputar uma eliminatória – a que, na Cantareira, já o Chico Fininho chamava “play off” – a duas mãos, com a França. A França, já Eça de Queiroz o escrevia, é um país. Pois, e daí?

A primeira mão disputou-se em Portugal, não correu bem nem mal, perdemos. E perdendo ficou em muito maior risco o nosso apuramento porque os jovens franceses não estão habituados a jogar com bola de trapos, o que nos dava jeito. Hoje, em França, disputa-se a segunda mão. É evidente, há que acreditar até ao fim, e prognósticos são para fazer, como dizia o outro, apenas quando o jogo tiver terminado. Mas a comunicação social, com relevo especial para a RTP do serviço público, tem exagerado. E vai-se fazendo crer, demagogicamente como se fossem políticos, que não corremos risco nenhum e que voltaremos apurados. Mesmo tendo feito mal o trabalho que tínhamos que fazer em casa.

Houvesse mais uns dias e, mesmo antes de jogarmos a eliminatória contra a França, já seríamos campeões. Porque somos os melhores? Não, porque somos os mais convencidos e porque nos esquecemos facilmente do que significam as palavras humildade e trabalho. Para além de algum demagogo, na RTP, pensar que informa ou legitimamente publicita alguma coisa nos termos rídiculos em que o faz.