19 de novembro de 2003

O primeiro ministro vai ao professor Karamba - I

O conselho veio-lhe directamente do assessor de imagem numa terça-feira, logo de manhã, ainda nem eram 11 horas, mal se tinha iniciado o forum da TSF sobre as pontes que iam caindo ao longo do IC19, logo depois de vistoriadas pelo Instituto das Estradas. Quase saltou na cadeira, de tão surpreendido, e inquiriu em voz alta: oh! homem onde raio foi você buscar essa ideia peregrina? Essa nem vinda do Dr. Garcia Pereira!

O assessor, em sussuro, recomendou-lhe que fosse discreto. Discreto porquê? Estamos sozinhos, ninguém está ao telefone, não há escutas. E daí, que houvesse, reagiria como os outros, já nem precisavam de fazer as transcrições. Sim, insistiu o assessor, mas V. Exa. sabe como são as coisas. Lembre-se do Sr. Procurador, Dr. Cunha Rodrigues. Por debaixo da alcatifa coçada e das tábuas de pinho já carunchoso do soalho havia microfones escondidos, à mistura com traças, pó de madeira, baratas e pontas de cigarros. E nunca ninguém soube quem os lá tinha posto. É como o segredo de justiça em relação ao processo da Casa Pia: ninguém o quebra e toda a gente sabe de tudo.

Pronto, está bem, concordo. Mas diga-me de onde lhe veio a ideia. O assessor aproximou-se-lhe perigosamente da orelha direita, podia sentir-lhe a respiração morna e o bafo cavernoso do tabaco, à mistura com um distante odor a colgate branqueador. Chegou a sentir receio de que se aproximasse demasiado e lhe fizesse cócegas.

E o assessor, muito baixinho, foi-lhe contando. Foi esta manhã a minha mulher enquanto eu, ainda de cuecas, – V. Exa. desculpe mas é assim, a gente, em casa, põe-se à vontade, temos as janelas fechadas, ninguém nos cusca – dava um jeito à barba, antes do duche. Foi lá no serviço dela, na escola que o Dr. Justino quer fechar para o ano, depois tenho de lhe pedir um favorzito sobre o assunto, mas adiante. Uma colega contou-lhe que a presidente do conselho directivo lhe dissera que a encarregada das empregadas de limpeza, nessa manhã, tinha encontrado nas camionetas do Barraqueiro uma amiga que é praticante – contratada a recibo verde – no ministério do Dr. de que, para já, não digo o nome. E que esta, em conversa com um terceiro oficial, fora informada que um motorista do chefe de gabinete do secretário de estado de que, para já, também não digo o nome, que este dissera que o Dr. X – vou passar a chamar-lhe assim, sabe como é, as paredes têm ouvidos! – lá tinha ido e que estava muito satisfeito com os resultados.

Oh! homem, realmente. Se eu não ouvisse nem acreditava. Mas está bem, traga-me um recorte do anúncio, bem dobradinho para ninguém sequer sonhar o que é, telefone a marcar, para tarde, quando já fôr escuro e tempo de lua nova, não quero ser identificado, nem sequer visto. Depois diga-me, vamos dispensar o motorista e não utilizamos o carro oficial que dá muito nas vistas, os batedores põem-se-lhe à frente com as sirenes aos gritos, quase a cem à hora. Claro, a segurança é menor, o risco aumenta, o desconforto do seu carro aguenta-se. É perto, é pouco tempo.

Às oito da noite o assessor bateu-lhe à porta do gabinete, esperou que o mandassem entrar, abriu a porta e chegou-se ao pé da secretária. Disse: podemos ir, já cá não está ninguém, a menina Andreia saiu agora mesmo a correr, tinha o namorado à porta com o carro em cima do passeio. A limpeza não é feita agora, só de manhã cedo, podemos sair à confiança.

Está bem, você estaciona o carro na rua, sob as árvores, a alguns 200 metros de distância e mantém-se ao volante, disfarçadamente. Faço esse percurso colado à parede, com a gola do sobretudo subida, a cabeça inclinada para o chão, seria um azar do caraças, ninguém vai aparecer e reconhecer-me. Vou parecer um conspirador dos tempos glororiosos da clandestinidade do Dr. Cunhal, nem eu sequer ainda conhecia o grande educador da classe operária, mas não há-de ser nada.

Chegado à porta esgueirou-se para dentro do prédio, antigo e degradado, com baldes de lixo no vão das escadas e estas empinadas, de madeira, sem iluminação, uma só lâmpada incandescente a cair por uma parede. Subiu ao primeiro andar, soturno e semi mergulhado nas trevas, com as tábuas do soalho a rangerem sob o peso do seu corpo e do seu cargo. Tocou à campaínha e mal esperou por resposta. Entrou. A recepcionista, de aspecto muito escandinavo recebeu-o e convidou-o a sentar-se. Disse-lhe: vou avisar o professor que o senhor já cá está, não vai demorar. E virou costas, sumindo-se pela porta em frente que teve o cuidado de fechar de novo.

Pensou: não é desajeitada de todo o raio da cachopa e não parece ter nascido na Nigéria. Puxou do recorte que o assessor lhe entregara, dobrado em quatro. Só leu as primeiras linhas que rezavam:

Gabinete de Astrologia
Prof. Karamba
“ O Fenómeno”
Astrólogo Médium Africano, 42 anos de experiência
FACILIDADES DE PAGAMENTO – PAGAMENTO APÓS O RESULTADO


A recepcionista voltou e disse-lhe: faça o favor de entrar. O professor espera-o. Guardou apressadamente o papel no bolso e lá foi. Bem espero que isto resulte, a gente tem de suportar cada uma!

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