18 de dezembro de 2003

Viva a herança socialista do camarada Dos Santos

Algures, nos idos de 1976, recordo-me de uma parangona do Jornal de Angola, impressa a vermelho vivo, a toda a largura da primeira página: viva a ditadura democrática popular. Agostinho Neto era ainda presidente do MPLA e da República Popular de Angola, José Eduardo dos Santos era ministro das Relações Exteriores. As figuras históricas do movimento, regressadas do exílio ou directamente das matas, ocupavam rapidamente os lugares de topo da administração pública. O café faltava para uma só bica no país que, dois anos antes, era o quarto produtor mundial. O imperialismo americano era hostilizado nas ruas e nos comícios. Os americanos alojavam-se no Hotel Trópico e continuavam, calmamente, a explorar o petróleo de Cabinda. À venda não havia nada. As lojas, os restaurantes e os cafés estavam encerrados por falta de produtos para trabalharem. Ao porto de Luanda continuava a chegar a prestimosa ajuda soviética em orgãos de Estaline, blindados e mísseis. Contingentes de cubanos, carregando armas e dólares, desembarcavam uns atrás dos outros e seguiam para as frentes de batalha. Alguns civis, também cubanos, ocupavam lugares de direcção em orgsnismos do Estado. Os mercenários eram julgados em tribunal popular especial com a acusação a cargo do escritor Manuel Rui Alves Monteiro. Cantinflas para os amigos de infância. O sonho, a utopia e a revolução ainda coexistiam. No governo havia brancos, mestiços e negros. Os ofícios emitidos pelos organismos públicos tinham abandonado o nosso velho conhecido "a bem da Nação" e passado a ostentar com garbo "saudações revolucionárias, a luta continua, a vitória é certa".

Nito Alves, negro, era ministro da Administração Interna. Revolucionariamente passeava-se pelas ruas de Luanda ao volante de um Mercedes descapotável com uma beldade loura e soviética a seu lado. À noite recolhia a um dos bairros suburbanos onde residia. Os camaradas da plebe diziam que ele não era como os outros que moravam no asfalto, residia com eles no bairro do golfe. Em teoria o mesmo adiantava que a revolução não estava completa: ainda havia brancos e mestiços no governo. Os históricos ainda se mantinham no topo, tudo passara a ser propriedade do Estado, de terras, a prédios esventrados pelos obuses e pelos morteiros, até aos mais pequenos estabelecimentos. O ministro da saúde exigia, em nome do Estado, uma compensação financeira a um jovem médico português que queria abandonar a país por ali ter tirado o curso. Encomendavam-se automóveis Alfa Romeo que chegavam a Luanda transportados em avião e punham-se a circular de imediato, mesmo sem matrículas. Começariam a aparecer estampados contra os candeeiros de iluminação pública da ilha logo na manhã seguinte. O povo viajava pendurado em maximbombos jugoslavos a que tinham sido arrancados todos os vidros.

A revolução prometia. A luta continuava. A vitória era certa. Em Portugal o Dr Soares pai já vivia equivocado mais haveria de equivocar-se muito mais. O país tardara a reconhecer o regime angolano, invocava os acordos do Alvor como se legitimasse D. Sebastião no trono. O socialismo haveria de ser metido no fundo de uma gaveta e o Dr Savimbi considerado um democrata exemplar, à semelhança do sargento Mobutu, o grande leopardo. Entretanto Agostinho Neto haveria de viajar para a URSS com o fígado desfeito e a vida por um fio. Regressaria morto. Alguém haveria de suceder-lhe, de forma dinástica, alterando a origem dos afectos que ele mantinha com o Dr Macedo, as alheiras de Mirandela e o vinho do Dão. Foi José Eduardo dos Santos, engenheiro, licenciado na URSS, novo, negro, bem parecido, inesperadamente.

As voltas que o mundo deu! O Dr Soares pai persistiu no equívoco, o Dr Soares filho viajou para Angola a visitar o democrata do galo negro, o avião acabaria a despenhar-se e a família ficaria para sempre refém de um conceito de democracia que hoje até ao Dr Portas ficaria mal. A URSS caíria feita em cacos enquanto o diabo esfrega um olho e, com ela, toda a Europa que circulava à sua volta. Em África tudo foi mais lento, mas os cubanos acabaram por se ir embora, o apoio de leste por esmorecer, a guerra por intensificar-se. Em Portugal os políticos não sabiam nada de África e continuam a não saber e mesmo o Dr Almeida Santos parece não ter por lá aprendido nada ou esquecido tudo rapidamente. Antes de um problema de raça África confronta-se com muitos problemas tribais. Para a exploração dos recursos isso é indiferente e esta é que de facto é importante.

Fazem-se eleições que os observadores dizem ter sido satisfatoriamente justas. Como acontece por cá, ninguém se conforma com os resultados, todos gritam vitória, a democracia não se impõe a ninguém. É a mesma coisa que ir libertar o Iraque à força, contra a vontade de todos. O mesmo dos Santos adere à democracia, mantem-se no Futungo de Belas, vai fazendo uma caterva de filhos. Sendo tudo propriedade colectiva enriquece tanto que nem ele sabe quanto. Dá lugares políticos a cidadãos estrangeiros que a justiça persegue como traficantes de armas. Finalmente hoje casou uma filha e juntou na capital angolana uma série de celebridades durante dias, como se fosse um casamento cigano. E junta Cinha Jardim a Durão Barroso, o costureito Augustus ao marciano Nascimento, o pintor Quaresma à filha de Saydi Mingas. O Dr Carrilho e a sua Bábá não são citados no jornal, ou por esquecimento ou porque não couberam na lista de convidados.

Entretanto a população de Luanda, em menos de trinta anos, cresceu quase dez vezes. A fome e a miséria terão crescido cem. As crianças vivem na rua e alimentam-se no esterco, conservam-se analfabetas, estropiadas e sem futuro. O presidente governa, o casamento é muito elogiado, toda a gente gostou, os noivos seguem para Portugal em lua de mel. O Dr Barroso fez questão em se deslocar a expensas próprias e regressará feliz, apesar do dinheiro gasto na prenda. Haverá muito quem aplauda. Eu não, e nem a ironia me ocorre!


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