30 de janeiro de 2004

Ser português é cada vez mais difícil

Ser português, hoje, não é uma condição. É uma fatalidade, é uma ignomínia. É sobretudo um risco permanente. Nem se acredita como foi possível ao país percorrer, aos solavancos e por caminhos travessos, quase novecentos anos de história e chegar aqui. Nada adianta ao cidadão ficar em casa, para se resguardar. É assaltado na cama, se preciso for. Pela pouca vergonha do discurso e pela mão ligeira da ministra das finanças.

O país perdeu o dinheiro, a capacidade de se endividar, o orgulho e a vergonha. Nem os nacionalistas fervorosos acham que vale a pena replantar as estátuas do Dr Salazar e recuperar o hino da mocidade portuguesa com novo arranjo musical. O país é um jogador compulsivo que perdeu tudo, incluindo os brasões e os aneis que confiadamente depositou nas casas de prego. E que persistentemente se apresenta em cada noite à porta do casino, a tentar que o porteiro o deixe entrar.

O país não está de tanga, está nu. Mas sem ser rei nenhum, é um simples plebeu, um sem abrigo abandonado na rua aos rigores do inverno e à violência dos empresários da noite. De tanga está o governo e a classe política, vazia e idiota, que se queixa de ganhar mal e de viajar pouco. Que já não vê o próprio umbigo sem o auxílio do espelho de aumento.

O estado já não é um ladrão, é uma quadrilha. Em que o chefe apenas manda quando não está nem ausente nem de costas. Porque se isso acontecer é traído pelo submisso primeiro ajudante que o substitui, mesmo sem mandato. E sem pedir licença.

O presidente da república vai acabar o segundo mandato e ser posto na rua como qualquer jovem licenciado a exercer funções de caixa num supermercado, ao fim de dois contratos de trabalho a termo certo. De nada adianta que tenha o discurso consensual e o raciocínio cartesiano. E do mesmo lhe servirá que a família tenha investido na sua educação anglo-saxónica, tenha aprendido inglês e saiba piano. Vai seguramente ser canonizado como o foi Santo António, mas depois de ter passado à história. Antes disso limitou-se a falar para orelhas moucas cujos donos assobiaram para o lado.

A classe política deixou de estar associada fosse ao que fosse de que o país pudesse orgulhar-se. E no entanto proclama o orgulho nacional a que passou a chamar auto-estima e vai ao futebol. Congela os ordenados aos trabalhadores e aumenta os seus. Promove o desemprego para ainda hoje poder apregoar que o combate. Deixou de ser uma educada graçola de salão para passar a ser uma ordinária anedota da vida.

A economia só existe nos manuais e estes são de autores estrangeiros e não têm quem os traduza. Os seus agentes, apóstolos convictos da ignorância e da vaidade, usam expressões estrangeiras sem saberem português. Deixaram de ir aos cinemas mas, mesmo em casa, não são capazes de ler as legendas dos filmes que passam na tevê cabo. Qualificam-se a si próprios de gestores, fixam-se elevados ordenados, atribuem-se automóveis importados de alta cilindrada. São adeptos do sexo sem constrangimentos mas não usam preservativo. Nem vêem os programas do Dr Júlio Machado Vaz.

Os trabalhadores, naturalmente, só existem para trabalhar. A continuar assim acabarão a fazê-lo de sol a sol e sem intervalo para a sesta. Como escravos. Numa selva em que os macacos verdadeiros, de rabo comprido, estão em vias de extinção e apenas são protegidos em gaiolas, no jardim zoológico. Enquanto o patronato em alvoroço reclama do salário mínimo muito elevado e da inutilidade das contribuições para a segurança social. E vai à socapa recrutando imigrantes de proveniência indefinida, a trabalharem pela sopa e a pernoitarem nas soleiras das portas.

O desporto é mais do que nunca uma inantíngivel escola de virtudes, com toda a estrutura do futebol profissional à cabeça. Em que o presidente da liga publicamente declara, aos berros, que ele é o exemplo sem mácula para que o país se deve voltar. Pensando, estúpido, que fala a sério. E fala, porque o país todo é uma fralda descartável que o bébé usou para tudo, sem o controlo a que os adultos ainda se obrigam.

A cultura quase só tem acolhimento no estrangeiro. Um escritor português para ser galardoado com o prémio Nobel, tem que de ter fixado residência em Espanha. E que ter sido afrontado por um qualquer governante que um tribunal veio a julgar como ladrão. Os outros, todos os outros, abstêem-se, não querem saber, não visitam as feiras do livro, não comparecem aos serões de poesia na Fundação Eugénio de Andrade.

O conhecimento português, invariavelmente, encontra-se emigrado. Só vem a férias uma vez por ano, e por pouco tempo. Internamente o conhecimento concentrou-se, é atributo de uma só pessoa, e mesmo assim é preciso que seja ela a proclamá-lo. Para além da adesão à União Europeia, da inclusão no grupo do euro e dos constantes atropelos às normas do pacto de estabilidade e crescimento, o saber reside no senhor Vasco Pulido Valente. Só ele sabe, só ele diz, só ele tem opinião. E só ele a reduz a escrito, de forma escorreita e sem erros de ortografia. Como se fosse uma cartilha. Como pode um tal país deixar de ser uma degenerescência?

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