29 de fevereiro de 2004

Analogia, casualidade ou nem por isso?

A Itália teve um Benito Mussolini. Portugal teve um António Salazar. A Itália tem um Sílvio Berlusconi. Portugal tem um Durão Barroso. A Itália tem uma Lega Nord. Portugal tem um CDS/PP. A Itália tem uma Força Itália. Desde este fim de semana Portugal passa a ter um Força Portugal. Para juntar ao Portugal em acção. De despejo!

A Itália é uma península com o feitio de uma bota. Portugal é um deserto com uma bota que não sabe como descalçar.

Porque não dão um calendário de bolso aos líderes partidários?

Os líderes dos principais partidos políticos, como é normal, não sabem a quantas andam. Mas, com a aproximação das eleições para o parlamento europeu, ainda se enervam mais, confundem datas, metem os pés pelas mãos e não sabem o que dizem.

O Dr Santana Lopes pede aos portugueses que mostrem um cartão vermelho à oposição. O Dr Carvalhas quer que seja mostrado um cartão vermelho ao governo. O Bloco de Esquerda, o Partido Comunista e a Nova Democracia reúnem-se num trio, tipo Cabeças no Ar, compram uma viola, um baixo e uma bateria e tocam em conjunto no funeral do bloco central. Apenas o Dr Manuel Monteiro é polivalente e assegura que tocará, com o mesmo virtuosismo, qualquer um dos três instrumentos. O Dr Ferro Rodrigues fala num ajuste de contas. Com o passado, com o presente e com o futuro. Por outras palavras, anuncia o seu harakiri público.

É óbvio que estes castiços estão equivocados com o início do Euro 2004, um dia antes. Ainda os fiéis não chegaram para a celebração, nem a procissão saiu das naves das igrejas, e já reclamam cartões de expulsão para os adversários. As eleições europeias são a 13 de Junho, dia de Santo António, feriado municipal de Lisboa. Não se enganem e não procurem continuar a enganar-nos a nós. Passem pela Brasileira, ao Chiado. Não precisam de entrar. Na esplanada o solene Fernando Pessoa terá a gentileza de vos dar um calendário de bolso. E de zombar da vossa ignorância e do vosso convencimento!

Em defesa do ambiente: um secretário de estado do lixo

O cidadão português não é exigente. É ignorante, convencido e injusto. Com a sobranceria dos trinta por cento de analfabetismo mantém a convicção de ser o melhor do mundo e acha ter sido tramado por tudo e por todos quando isso não acontece. E, como sabemos por experiência própria, nunca acontece.

O cidadão português desdiz sempre dos outros, mas nunca de si próprio. Ou porque falam línguas que ninguém entende, como os finlandeses, ou porque bebem como esponjas, se embebedam e provocam desacatos como os adeptos do Manchester United. Mas, apesar disso, não entende nunca o que diz o Dr Alberto João com o seu sotaque cerrado da Ribeira Grande nem o português lapidado, como se fosse um diamante da Lunda, da Dra Edite Estrela. Orgulha-se, paralelamente, de ter a mais alta taxa de alcoolismo da União Europeia e de ainda haver velhos e novos, nos meios rurais, que tropeçam e caiem pelas valetas, grossos como um cacho, onde adormecem ao relento da noite. A curtir a desgraçada!

Para além disso são invariavelmente injustos. Primeiro para com os estrangeiros, depois para com os nacionais que não torcem pelo mesmo clube, que não frequentam a mesma sala de cinema ou não vêem os mesmos programas de televisão. Juntam-se em associações sem fins lucrativos, que depois são consideradas de utilidade pública, para afrontar tudo e todos. Em defesa do ambiente, por exemplo, criticam-se os que estabelecem suiniculturas que lançam directamente no remanso bucólico do rio Liz os mal cheirosos dejectos. Ou os que dão a recantos menos divulgados da serra da Estrela um aspecto mais típico e mais trágico, abandonando a céu aberto as marrãs mortas no parto. Em uníssono, depois, critica-se e ataca-se o governo, seja qual for a sua cor partidária, como se ele tivesse feito alguma coisa. Embora todos saibam, à partida, que nunca fez nada.

Ainda agora, na edição de sexta-feira, o Jornal de Notícias publica uma fotografia do Sr José Eduardo Martins, ilustríssimo Secretário de Estado do Ambiente, e cola-lhe ao lado uma seta com o bico virado para baixo acompanhando-a do seguinte texto: "Mas que proposta! Como é que se pode multar quem não separa o lixo? Vigiando os caixotes? Remexendo os sacos à procura de indícios?". Para começar, a seta e o texto estão a mais: o jornal não tem que emitir opinião, tem apenas que noticiar. Um secretário de estado é um responsável político, como um presidente de uma junta de freguesia. É uma pessoa de respeito. O que pensa que faz, pensa sempre também tê-lo feito a bem da comunidade, no interesse nacional, patrioticamente. E, no caso vertente, já bastava o ar espantado do secretário de estado como se fosse perseguido por uma brigada completa da polícia de trânsito ou pelos cobradores de fraque da Dra Manuela Leite.

O cidadão português tem que, por uma vez, compreender e aceitar o patriotismo dos que o governam e passar a ser ilustrado, humilde e justo. Passando também a ser exigente. Portugal está na vanguarda dos países que adoptam medidas rígidas de protecção ao ambiente. A Quercus, definitivamente, vai dissolver-se e os seus membros perder-se nas galerias calcárias das serras de Aire e Candeeiros. A coligação entre o partido comunista e os verdes deixa de ter razão de ser, para descanso do primeiro-ministro. O país, orgulhosamente, deixa para trás os americanos que renegaram o protocolo de Kyotto e que, em defesa do ambiente, apenas desencadeiam guerras e queimam derivados do petróleo. Somos o primeiro país a ter um secretário de estado do lixo. Depois de já termos tido e de continuarmos a ter muitos ministros para o lixo, Quanto à regulamentação das multas, segue para a semana. Para já o secretário de estado está de fim de semana!

O centenário do Benfica

O Benfica é, a partir de hoje, também uma instituição centenária. Começou por ser um pequeno grupo, cresceu, ganhou estatuto, atravessou fronteiras. Acabou, como o país e à semelhança deste, a vogar num mar alteroso, pejado de dificuldades, indo além daquilo que era humanamente possível. Improvisando e acreditando que o improviso é a chave para o sucesso. É indiferente que tenha seiscentos mil ou seis milhões de adeptos. O Benfica é, honestamente, uma instituição que ganhou o estatuto de não pertencer à Travessa do Jardim do Regedor, de não pertencer à cidade de Lisboa e de não pertencer ao país que é Portugal. O Benfica para mim, que não sou sequer benfiquista, é uma instituição que pertence ao mundo porque, à sua medida e com a sua glória, se foi apoderando dele. Os centenários, sejam do que for, são para felicitar. E por isso, sinceramente, quero aqui lavrar o registo dessas felicitações.

Mas não deixei de me surpreender hoje com a evocação que durante um jantar de ontem foi feita dos ex-presidentes que ainda vivem e onde se integram nomes de grande admiração e prestígio. Chocou-me que não tivesse sido referido o nome de Vale e Azevedo, que toda a gente sabe estar preso. Condenado num caso, suspeito noutros. Também aqui que ele seja herói ou vilão é perfeitamente irrelevante. Ninguém pode apagar a sua história e ninguém o deve fazer. Ninguém omite da história nacional que temos os reis que julgamos indignos do país que somos. Concorde-se ou não com as suas ideias e com a sua prática, Salazar foi presidente do Conselho de Ministros e figura dominante do século passado. Bom ou mau, honesto ou não, inocente ou culpado, Vale e Azevedo foi presidente do Benfica. O Benfica foi, é e será sempre superior a quem o serve e muito mais a quem dele, eventualmente, se tenha servido ou pretendido fazê-lo. A sua glória é superior à de qualquer pessoa e prevalecerá intacta, aconteça o que acontecer.

A omissão não é obviamente bonita. Até por ser absolutamente desnecessária, independentemente do propósito que tenha perseguido.

28 de fevereiro de 2004

Se o ridículo matasse o Sr Catarino não terminava o mandato

Boa noite a toda a blogosfera. Com licença do Dr António Lobo Antunes, boa noite também às coisas aqui em baixo. Hoje voltei a Ourém e acabo de regressar. A cidade continua intransitável, com obras em pleno centro, que nunca mais terminam. Tudo ao mesmo tempo, tudo no período de inverno, tudo a monte e fé em Deus, segundo a táctica do José Maria Pedroto.

Dá para, infelizmente, confirmar a imbecilidade com que foram arrancadas árvores cujas idades, de longe, suplantavam a idade física e mental da ilustre vereação. Ficou-me, de longa data, uma muito feliz frase de Manuel da Fonseca que dizia que "antigamente o largo era o centro do mundo". Referia-se, segundo presumo, a Santiago do Cacem, a sua cidade de sempre. Onde, majestoso, continua imutável o velho largo em frente ao edifício dos paços do concelho.

É mais pobre o espaço que circunda os paços de concelho de Ourém. Incaracterístico, desordenado, abandonando o edifício da câmara sem enquadramento em coisa nenhuma e a combinar rigorosamente com nada. E onde nada foi feito, se calhar à semelhança do que acontece no interior com a vereação. Que, apesar disso, plantou já há tempos uma modernice de uma rotunda na entrada ocidental da cidade, com um monstruoso mamarracho rodeado de calhaus por todos os lados e uns cilindros evocando as freguesias do concelho cujos nomes, praticamente, se não conseguem ler.

O largo, o do alentejano Manuel da Fonseca, nesta transição para o Ribatejo, em frente ao Café Central, morreu. As árvores foram arrancadas, calcetou-se tudo de novo, num arranjo que não diz com os edifícios fronteiros. Com pretensões de grande cidade, onde a mesma solução é ainda mais estúpida, plantaram-se pinos cuja função, teoricamente, será impedir o estacionamento em transgressão. Não impedirão coisa nenhuma, serão torcidos, partidos e arrancados como vem acontecendo nas cidades onde já foram adoptados. Porque também nisso Ourém é única: não há onde estacionar em lado nenhum. Mas, mesmo assim, há parcómetros ao longo de toda a avenida que, recorde-se, é a estrada que liga Leiria a Tomar.

Mas, seguramente, é rica a câmara e não tem problemas cruciais a resolver, pelas prioridades que estabelece. Sei, pessoalmente, que isso não é verdade. Cada freguesia do concelho é um problema agudo. Algumas delas, se calhar, só vêem o Sr Catarino em véspera de eleições, quando vai distribuir vídeos inúteis pelos lares de idosos que, em suas casas, vivem muitas vezes em condições perfeitamente indignas.


27 de fevereiro de 2004

A frouxa tourada mensal de S. Bento

Longe vão os restos mortais dos portugueses de excepção que animaram as conferências do casino. Sobravam-lhes, nessa época, a inteligência acutilante, a ironia devastadora e o superior desdém com que tratavam a classe dirigente que se ia sucedendo no poder. Depois deles ficou o vazio, árido como o deserto em que nem a areia se dá. A glória pátria conservou-se, apesar de tudo, na inutilidade da classe política que se eternizou. Naquele tempo abandonavam-se as colónias e desdenhava-se delas. Para as colonizar enviavam-se porões carregados de facínoras, a regenerarem-se e a difundirem a fé. Foram-no fazendo o melhor que sabiam, juntaram-se a submissas indígenas, foram pais de sucessivas gerações de mulatos. A metrópole teimava em valsar nos salões, ao som já distorcido de velhos instrumentos e sob o metal oxidado dos candelabros. As jóias tinham sido depositadas nas casas de prego sem que houvesse dinheiro para o resgate. Já nem a agiotagem corria o risco, aristocrático e incomensurável.

De permeio o país julgou-se governado por um celibatário inteligente, beato e tonto. Que julgava fazê-lo por inspiração divina e que se sentia no dever de exorcizar os infiéis usando os serviços dos mais díspares mandatários. Nunca no percurso histórico de nenhum país, a vida de um homem teve expressão que lhe sobrevivesse por longo futuro. E assim foi também com este. Não teve a memória que dele ficou tempo suficiente para ir à fonte e lavar as mãos do sangue que deixara secar-lhe entre os dedos.

Hoje o país nem pensa que é governado seja por quem for: pura e simplesmente sabe que o não é. De quatro em quatro anos, na melhor das hipóteses, gastam uma fortuna para que uma trupe de eleitores vá fazer uma cruz num quadrado, dobrar um papel em quatro e metê-lo, à força, numa caixa de aglomerado. Saem dali, eleitos, 230 privilegiados, quase sempre os mesmos, que vão passar o tempo a discutir o sexo dos anjos e dos netos que já emprenham as filhas e as noras. Quando a ciência tem hoje meios fáceis e expeditos de saber se é menino ou menina.

À falta das conferências, renovou-se a tourada. Já não só de Verão, às quintas-feiras, transmitidas em directo nos serões da RTP. Já não há pachorra para assistir à barbárie de carregar sobre touros indefesos, espetar-lhes ferros afiados no dorso e, depois de sangrados, retirá-los da arena para abate e venda como carne para bife nos supermercados. Não! A tourada, arrogante, convencida e inútil, transferiu-se para o hemiciclo de S. Bento. Onde, de mês a mês, comparece o governo como quem presta contas à mulher a quem, ao modo antigo, nunca sequer deu mesada para o governo da casa.

Por incrível que pareça, o que se discute? O sexo dos anjos, a perda das colónias e o défice do orçamento. As discussões arrastam-se, monótonas e tristes, entre os quase três e os cerca de cinco por cento. O menos bem que o governo consegue - porque o governo nunca consegue nada mal! - é sempre culpa do passado, que não foi dele, mas da oposição. A oposição acha sempre que o último bem que o país teve foi o último governo que ela própria liderou. Não há ideias, nem imaginação, nem idoneidade, para além daquelas. Há oportunismo! Tão grosseiro, tão descarado, tão demagógico que o eleitor se sente muito cumprimentado, como atrasado mental que dele, sistematicamente, vão fazendo. Cada vez mais.

Ainda esta manhã o primeiro ministro acusava uma deputada da oposição, - cuja beleza física enaltecia, o maganão! - de nunca ter ido a eleições. O que deixa a suspeita, grave e intolerável, de haver deputados que ocuparam os seus lugares na bancada servindo-se de jagunços. Mais: ria-se o mesmo assim um bocado a despropósito, porque é primeiro-ministro e porque tem um curso superior, de políticos a que chamava comunistas envergonhados. E gargalhava, quase alarvemente. De facto é raro que haja quem possa apregoar a constância e a fidelidade ideológica do Dr Barroso. A não ser no interior do seu partido!

O Dr Madail também tem o direito de se indignar

Na última quarta-feira as atenções do país concentraram-se no novo estádio do Dragão, no Porto, onde se disputava o encontro de futebol entre Futebol Clube do Porto e o Manchester United. Como habitualmente os políticos apinharam-se, pondo-se em bicos de pés e esticando perigosamente os pescoços como se fossem girafas, na expectativa de que alguém conhecido lhes acenasse com o rectângulo mágico de um convite para a entrada.

O Dr Madail, apesar de ser o presidente da nossa cinzenta Federação Portuguesa de Futebol, não mereceu a honra de ser considerado face visível do sistema pelo Dr Dias da Cunha. Tem um ordenado elevado, viaja em classe executiva, frequenta hotéis de cinco estrelas mas, quanto ao sistema, estamos conversados. É um peão, e mesmo este não é de rei ou de rainha.

À sua chegada ao estádio o Dr Madail vinha exausto e furioso, espumando. Tinha demorado quarenta minutos a chegar. Ele, que segundo confessou, beneficia de alguns privilégios, entre eles o de dispor de estacionamento no interior do recinto. Não se admitia uma tal falha porque, disse, entidades estrangeiras, como câmaras ocultas, registavam detalhadamente tudo o que se passava.

Desde o Dr Mário Soares que assiste a todos os portugueses, democraticamente, aquilo a que ele chamou o direito à indignação. Deve ter sido o máximo que teve a filantropia de compartilhar connosco e com o Dr Madail, obviamente, também. Para além disso quem é o Dr Madail? Um político que fez escola nas bancadas de S. Bento, e isso chega para que se desconfie dele e não se dê grande importância àquilo que diz. Quanto ao resto, levante-se cedo, saia a tempo e horas, porte-se como se fosse um portuense vulgar. É uma honra que a cidade lhe confere, mesmo temporária. Ou então reclame mais privilégios, adquira um helicóptero, contrate um piloto, faça por ser mais uma face do sistema. À atenção do Dr Dias da Cunha e da próxima entrevista que este der ao Sr José Vilhena.

Ridícula, por espantosamente imbecil, a desculpa adiantada pelo Dr Rui Rio. Como político profissional limitou-se a sacudir a água do capote: culpou a PSP. Deve ter sido por esta corporação, transida pela paranóia da bomba e do atentado, ter encerrado ao trânsito metade da cidade. Quanto às bombas, só houve as do sul-africano McCarthy e as de cheiro que sobraram dos corsos de terça-feira de Entrudo.

26 de fevereiro de 2004

Portugal: medalha de bronze na carestia de vida

Durante anos a fio andámos a apregoar, em termos de competição olímpica, o facto raro de termos ganho uma medalha nas provas de vela. Depois, pela mão do eterno Mário Moniz Pereira, o atletismo português adquiriu visibilidade, garantiu estatuto e largou Carlos Lopes pelo mundo fora a ganhar competições e medalhas.

Como o governo quer e nós acreditamos, as coisas evoluíram. Um estudo cujos resultados agora foram divulgados colocam o país em terceiro lugar num conjunto de treze que foram visitados com o objectivo de analisar o custo de vida em 55 cidades. Não é brincadeira, a um terceiro lugar, para todos os efeitos, corresponde a medalha de bronze. E ainda um lugar no pódio, um ramo de flores, dois beijinhos na face dados por uma jovem ariana de nacionalidade indeterminada, um flácido aperto de mão circunstancial de um dirigente careca e o reconhecimento efusivo dos nossos compatriotas e dos antigos colegas de escola que hão-de mandar-nos postais de felicitações.

E sobretudo o orgulho - desculpem, mas embirramos com a tal auto-estima! - , ainda quente, como pneu usado regressado da recauchutagem. Sabermos que os preços em Viana do Castelo estão ao nível de Bruxelas e acima dos de Paris recorda-nos Pedro Homem de Melo e a sua determinação dita, repetida e cantada de lá irmos. Finalmente! Em alguma coisa somos iguais ou superiores aos outros. O Porto à frente de Londres! E de Manchester, ficou ontem mais do que provado. Por dois a um. Sem vaidade e sem arrogância. Humildemente, como diz o pai dele, o Sr Mourinho limitou-se, no fim, a declarar: "somos os maiores, ficou provado, sete ou oito também estaria certo".

Há lá comparação que se possa fazer entre o Tamisa e o Douro? O típico barco rabelo, carregado de pipas de néctar produzido nos socalcos, acostando ao cais de Gaia pode lá ser comparado a alguma coisa? Não é possível confundir os encantos do rio Lima, com a esconsa ponte do Sr Eiffel por cima, com o rio Sena com a torre do mesmo senhor apenas ao lado. Montmartre, Place Pigale - e o que ela tem de encantamento! - contam alguma coisa se comparados com a baixa vianense! Ou com Moledo!

Por isso mesmo não percebemos como é que amanhã, legalmente, uns trolhas quaisquer do Chile, arraçados de índio, possam produzir uma zurrapa ordinária, engarrafá-la e colar-lhe um rótulo a dizer "Vinho do Porto". Mas disso quem sabe é o engenheiro Sevinate Pinto, que é do governo e que já deve ter estado no Chile.

A reforma da justiça: cagadeiras para todos

Sua excelência a ministra da Justiça, Dra Maria Celeste Cardona, anunciou ontem no parlamento, solenemente, a intenção de eliminar os baldes higiénicos nas prisões até ao fim de 2006, como uma das medidas de grande alcance que se enquadra na reforma de todo o sistema prisional. Recorde-se que na semana passada a deputada do PSD Teresa Morais tinha apresentado um projecto de resolução com vista à erradicação do balde até 2005. Sua excelência, que funciona muito organizadamente por encomenda, foi ontem sensível à questão e assumiu o compromisso.

No final dos trabalhos foi sua excelência muito cumprimentada pelo alcance da sua reforma e os jornalistas presentes correram a transmitir a notícia às suas redacções para as parangonas da ordem. Os telejornais dedicaram ao assunto a subida honra de ser notícia de abertura e num deles estiveram mesmo presentes a ministra e um balde. Este estava, naturalmente, fechado com uma tampa hermética para que não exalasse o mínimo cheiro.

Em termos económicos espera-se que os produtores de louças sanitárias aumentem a capacidade das linhas de produção das suas fábricas e que os importadores de Espanha reforcem as suas encomendas periódicas. A medida assumirá também, deste modo, a condição de factor positivo da muito ansiada retoma económica.

25 de fevereiro de 2004

As cartas marcadas do baralho do serviço público

O cidadão vulgar, como qualquer de nós, pode questionar-se cada vez com maior frequência, sobre o que é serviço público e sobre que funções de facto, e no interesse da comunidade, o Estado ainda desempenha.

O serviço público é diariamente invocado no caso específico da televisão e dos dois canais que continuam a ser propriedade do Estado. Para benefício do cidadão? De maneira nenhuma! Apenas para benefício ilegítimo do Estado e do poder político que o governa. A televisão de serviço público não é diferente da privada que, aliás, reclama também para si o estatuto de serviço público. Faz por competir com ela, nas dezenas de minutos de publicidade, nas anunciadas 500 horas sobre um campeonato de futebol, na aquisição de concursos que não revestem nenhum interesse cultural e, muitas vezes, nem sequer de simples entretenimento. E na contratação de apresentadores pelos dois palmos de cara, pelo compadrio, pelo favor puro e simples.

Mas outras coisas há que têm beneficiado, legalmente, do estatuto de serviço público. Entre elas, por exemplo, o telefone, que acaba de perder esses estatuto. O Público de hoje insere uma consciente denúncia da situação e sugere que as alterações que os ditos deputados da nação aprovaram, pura e simplesmente são inconstitucionais. Mas, quanto ao sector das comunicações, nada é de estranhar.

A chamada privatização iniciou-se na década de noventa, quando o governo, premeditadamente e de má fé, na intenção clara da negociata futura, cindiu a empresa pública CTT em duas, daí resultando a Telecom Portugal, para vender em lotes. Para facilitar as coisas a quem hoje lá manda - e o Dr Miguel Horta e Costa, tendo sido empregado dos CTT, foi para a PT como empregado do grupo Espírito Santo! - o governo emitiu um decreto e possibilitar, durante cinco anos, a aposentação vantajosa dos empregados vinculados à Caixa Geral de Aposentações. E prorrogou-o, contrariamente ao que fez com dispositivo similar aprovado para abranger os funcionários dos CTT.

A privatização deu os resultados que se conhecem. A empresa é um monopólio poderoso e, como um polvo, foi criando tentáculos sucessivos no campo das telecomunicações móveis, da televisão por cabo e dos acessos à internet. As receitas foram aumentando e o número de empregados reduzido, com a institucionalização do trabalho precário, seja sob a forma de contratos a prazo, seja sob a forma ilegal dos chamados recibos verdes. A qualidade dos serviços decresceu assustadoramente. O atendimento não existe. A prepotência é o lema da empresa. O monopólio consolida-se e a ténue concorrência que, nalguns sectores, chegou a sonhar, protesta e abandona o campo. Para que qualquer luta seja justa é preciso que os contendores, no mínimo, possam dispor de armas idênticas. Não é o caso.

O caso do serviço público telefónico não é um escândalo porque já nenhum de nós acha escândalo seja o que for. Mas é um atentado perfeitamente espartano às populações rurais, envelhecidas, cada vez mais isoladas, mais sozinhas e mais abandonadas do país. Que não têm um sistema de saúde decente, - onde o ministro, apesar disso, manda operar à má fila mesmo os que o não desejam, segundo apregoa! - nem fornecedores alternativos de electricidade e água e que, agora, verão que o telefone é um luxo, embora dele necessitem para contactar com a sede do concelho, a dezenas de quilómetros.

Ser português é cada vez mais um fardo que se carrega, uma vergonha que nos dias passados se escondeu atrás de uma máscara de fabrico chinês. E que hoje, quarta-feira de cinzas, tivemos que retirar. Para a exibirmos em público, como se tudo estivesse bem, como se não soubéssemos de nada.


Não se confunda toucinho com velocidade

Nós portugueses, somos muito atreitos a fazer uma série de confusões que muito nos embaraçam quando nos decidimos a pensar um pouco. Talvez isso decorra do facto de, pura e simplesmente, estarmos muito habituados a que outros pensem por nós. Aconteceu assim com o Dr Salazar que, inspirando-se de terço em riste, foi pensando por nós todos durante quase meio século. O professor Marcelo Caetano sucedeu-lhe, sem que ele soubesse - o morto-vivo! - e foi pensando por nós, como homem normal que na altura disse ser, empunhando o Código Administrativo. Depois houve a revolução de Abril de 1974, os militares saíram à rua e convenceram-se de que também podiam pensar por nós todos. Equivocaram-se! Tanto que alguns actuais democratas, que o são pelo menos há cinco gerações, como os Drs Portas e Pacheco Pereira, chamaram-se a si a suprema tarefa de deixarem de pensar pela maralha e passaram, inteligentemente, a pensar por si próprios e em seu próprio proveito. Não temos sido felizes com a solução e nada indica que o venhamos a ser. Mas vamo-nos conformando e abstendo-nos cada vez mais nos diversos actos eleitorais. Dos quais, refira-se em abono da verdade, os actuais eleitos bem acham que se poderia prescindir. Porque legitimamente se sentem a elite, a fina flor, sem hipóteses de encontrar melhor em eleições futuras. Por patriotismo, como sempre, estariam na disposição de pensarem por eles vitaliciamente, como o Dr Almeida Santos. Apesar de, como ele, estarem todos escandalosamente mal pagos, vendo-se forçados a trabalhar para além da idade em que se pode requerer a reforma.

Com isto tudo acabamos a confundir alhos com bugalhos e, frequentemente, toucinho com velocidade, coisa que não faz sentido nem para o Michael Schumaker. Com a erudição de gente letrada, que muito escreve para jornais e que muito fala de cátedra em conferências pagas, vem sendo ultimamente referida com insistência a hipótese de se verificar nas sociedades no nosso tempo uma perigosa tendência anti-semita. Não o cremos e, bem ao contrário, não se vem fazendo a confusão de coisas distintas. O problema de Israel não pode confundir-se com a generalidade semita. Que o Sr W. Bush se não oponha, não diga palavra, sobre os métodos que o Sr Sharon vem seguindo é apenas sinal daquilo que todos já sabemos. Fá-lo por ignorância, por dependência e por impotência. Não cremos que o problema do médio oriente - ou da Palestina, para sermos mais exactos! - se venha a resolver com os atentados suicidas que se têm repetido. Mas, seguramente, não hão-de também resolver-se pela construção de muros de betão armado, tenham eles oito ou vinte metros de altura. O muro resolverá tanto com resolveu o de Berlim. Do qual, não sabemos a que propósito nem com que intenções, um bocado está em exibição no santuário de Fátima. Como se fosse coisa que se adorasse!

24 de fevereiro de 2004

Cozido à portuguesa atravessado na goela

Ninguém esperava, mesmo hoje, terça-feira gorda, que o esqueleto da Dra Manuela Leite pudesse esconder a caveira atrás de uma máscara da Barbie, a brincar de ministra das finanças numa terra de faz de conta. Aquele ar sisudo, o sobrolho carregado, as sobrancelhas densas e o fato tradicional não auguram nada de bom. Mas não era preciso chegar a tanto, o dia era de folia mesmo que o Dr Barroso ache que o país está de tanga e que o tempo, francamente, não tenha convidado muito ao seu uso, por causa dos resfriados.

Mas a Dra Manuela Leite fez com que 200 genuínos portugueses, se calhar alguns deles com os impostos rigorosamente em ordem, talvez outros bem sucedidos empresários e convictos patriotas, tivessem hoje ficado com as carnes fumadas do cozido à portuguesa atravessadas nas goelas. O que, valha-nos isso, impediu o estridente berro de revolta e um simulacro de grito do Ipiranga II, na margem de um dos ribeiros poluídos e quase secos cujos vales esventram as províncias do país.

Segundo as notícias que foram sendo divulgadas, sem que hoje seja o dia das mentiras, foi salientado que, devido a sinais exteriores de riqueza, o fisco está a apertar o cerco a 200 portugueses. Que descanso terão, doravante, os prósperos industriais e competentes gestores do vale do Ave que, à custa de grandes sacrifícios e muita poupança, conseguiram construir uma modesta moradia de cem mil contos e comprar automóveis para a família no valor de mais cinquenta mil? Mesmo que honestamente tenham inteiramente declarado o salário mínimo que auferem e as despesas de farmácia que suportam com a sogra, reumática, com quem coabitam?

E o senhor Manuel Damásio? Coitado! Mesmo que tenha ganho muito dinheiro na bolsa, o senhor Pedro Caldeira ficou-lhe com grande parte dele. Os seus rendimentos são escassos e a sua casita, na Quinta da Marinha, foi comprada em saldo ao mister Joe Berardo, apenas por quinhentos mil contos. O que lhe atrapalha a vida não é, felizmente, a conta da farmácia da sogra. Mas os gastos da D. Margarida em roupa interior e ainda a sua serôdia decisão de ter ido estudar História da Arte. Com as propinas ao custo que estão!


Com empresários destes o país nem precisa de trabalhadores

Os denominados empresários portugueses têm andado demasiado activos. Coisa rara, atendendo, na generalidade dos casos, à provecta idade que o bilhete de identidade lhes confere e ao merecido descanso de que, há longo tempo, estão necessitados.

Primeiro, segundo os jornais, quarenta foram à Presidência da República para manifestarem a sua apreensão ao Dr Jorge Sampaio. Sentiam fugir-lhes para Espanha o seu sentimento patriótico e a gestão das empresas a que chamaram, muito sensatamente, "centros de decisão". Julgando, e bem, que o euro é a moeda única em cujo primeiro comboio viajamos, os accionistas da Somague entenderam que o patriotismo varia na razão directa dos euros que se possuem. Sendo assim, venderam aos nossos vizinhos do lado. Ficaram aliviados das responsabilidades e sobrecarregados com euros caindo-lhes dos bolsos. Patrioticamente.

Depois, ainda segundo os jornais, reuniram-se 500, muito religiosamente, no convento do Beato. No seguimento de uma iniciativa patriótica do Dr Carrapatoso que, como toda a gente sabe, é o maioral da portuguesíssima Vodafone, acidentalmente com sede numa qualquer obscura "street" londrina. Para bem do país e tranquilidade das consciências enunciaram trinta princípios essenciais, tão vazio o primeiro como o último. Para preservação da espécie reclamaram, mais uma vez e com acrisolado patriotismo, a liberalização dos despedimentos. Auto-denominaram-se "compromisso Portugal" e regressaram, triunfantes, ao remanso das famílias e ao seio descaído das mulheres.

Agora, ainda segundo os jornais, reuniram-se os chefões das associações patronais e, patrioticamente, reafirmaram a sua fé na ladainha do Beato. Pouco dados às letras e tendo visto recusado o convite endereçado ao Dr António Lobo Antunes para que fosse ele o relator, tiveram que ser eles a redigir o documento. Claro, linear e objectivo como impõe a objectividade dos números. Foram felizes e não se perdeu nada que o Dr Lobo Antunes tenha continuado entretido com os Cus de Judas. Senão atente-se no seguinte parágrafo:

Há que garantir o dinamismo da procura interna, assente no investimento e na evolução sustentada do consumo, sobretudo do consumo privado, por via da libertação de maior rendimento disponível das famílias.

... não basta termos passaporte europeu: importa sentirmo-nos, vivermos e trabalharmos como europeus.

A obtenção de níveis adequados de receita pública depende mais da criação de riqueza assente na redução dos custos de produção, que da impossibilidade de um esforço contributivo insuportável às empresas e aos cidadãos, que acaba por trair perversamente os seus objectivos, como a quebra da receita fiscal o vem demonstrando.

Ficamos na dúvida, porque tanto o senhor de La Palisse com o senhor Luiz Pacheco poderiam ter escrito tão belas linhas. Mas não temos dúvidas em relação a um aspecto: país que tem empresários destes, não precisa de trabalhadores. Força com a liberalização dos despedimentos. Avante por Nossa Senhora de Fátima e pelo Conde de Ourém!

O ajudante do Dr Santana Lopes


Manuel Frexes assina hoje, casualmente terça-feira gorda, um artigo no Público com o equívoco título: "Presidenciais e malabaristas". Para que se saiba quem é, realça no fim o cargo que actualmente ocupa: Presidente da Câmara do Fundão.

Queremos crer que, por inadmissível lapso, o sentido do título foi irrecuperavelmente adulterado. Era para ser: "Os malabaristas e as presidenciais" e não como saiu. Na edição de amanhã sairá a correcção, depois do senhor José Manuel Fernandes ter incumbido um redactor de serviço da redacção da habitual secção: "O Público errou". Fica tudo esclarecido.

Segundo cremos este defensor oficioso do plumitivo candidato Santana Lopes, foi seu ajudante no tempo em que este era ajudante de ministro. Quer dizer, Manuel Frexes foi ajudante de um ajudante de ministro. Agora reclama para si, que não para o concelho que lhe paga, a prerrogativa de nomear o próximo presidente da república. Fique descansado, o seu patrão tem memória curta para muitas coisas, mas há-de recordar-se desta quando chegar a altura. Talvez consiga que seja nomeado candidato do partido à vereação da Covilhã!

Apenas um reparo. Acha o senhor Manuel Frexes, como diz, que Santana Lopes ou alguém provou o que vale indo a votos? O senhor não é deste mundo, o senhor vive mesmo muito longe da respeitável cova das Beiras. O senhor é de facto um extra-terrestre que acredita em fantasmas.

23 de fevereiro de 2004

É carnaval, nada parece mal


O tempo é de descontracção e divertimento até amanhã, às 24 horas. Tão falhos de imaginação como os treinadores de futebol, ocupamo-nos como eles. A dizer mal dos árbitros e a plagiarmos tácticas alheias que nos levem a pensar sermos incorrigivelmente divertidos como as gentes dos climas quentes. Enchemos o olho com o que, em tempo real e sem fingimento, nos manda o Brasil. E para reduzirmos a depressão crónica com que nascemos, juntamos aos ansiolíticos a companhia passageira e paga de figuras de telenovela. Com a crise financeira já utilizamos, em alguns casos, prata da casa, havendo que recrute concorrentes do Big Brother, dos Ídolos e, se calhar, do Quem quer ser milionário.

Amanhã manda a tradição que nos empanzinemos à mesa, com travessas de tamanho XXL, repletas de cozido à portuguesa, a transbordarem, à força de um maduro tinto encorpado, não importa de que região. Comemoramos, a um tempo, a folia do Entrudo e o espírito mordaz e cirúrgico do saudoso José Rodrigues Miguéis naquele livrinho exemplar que é o "É proibido apontar". No dia seguinte é quarta-feira de cinzas, acabou a dança e a folia como nos lembra a cantiga do Chico Buarque, começa a Quaresma e o jejum, até à Páscoa. Salvo quem tiver ido à sua paróquia adquirir a necessária bula, ninguém deve comer carne. O que vem, neste período de imagens cobertas nas igrejas, por tecidos tristes, roxos e púrpura, inflacionar o preço já de si proibitivo de qualquer tipo de carne.

Nada fica mal no decurso destes dias. Toda a gente faz o favor de nos tomar por incontidos foliões, a quem se perdoam todas as ousadias ou excessos. Ninguém se ri do país que somos, todos lhe damos o desconto que a época justifica. Rotulamos tudo de brincadeira de carnaval, achamos que algumas são excessivas, mas seguimos adiante porque um dia não são dias. Pegamos, como exemplo, na edição de hoje do Público e não tomamos a sério o seu director, os seus editorialistas, os seus redactores ou os seus fotógrafos. A edição é de carnaval e está tudo dito!

O destaque da primeira página diz que a economia portuguesa andou dois anos para trás em 2003, segundo a conclusão de um qualquer estudo. Brincadeira de carnaval, mal disfarçada, em letras grandes, ainda por cima na página de acolhimento. Desde logo, como conclusão de um estudo, como se alguém pudesse levar isso a sério. Em Portugal não se estuda, nem nas escolas e mesmo nestas, o pouco que se estuda não serve para nada. Depois a economia a andar para trás! Para trás mija a burra, isto é um país prafrentex, há dois anos que ninguém nos aguenta, estamos a caminho de sermos um dos países mais desenvolvidos da Europa. Se aquilo não fosse uma grosseira brincadeira de carnaval nem o Dr Santana Lopes queria ser presidente da República e andava a desafiar o professor Cavaco para a porrada.

Uma curta notícia, ainda na primeira página, sobre o arranque do Fantasporto. Em castelhano, dizem! O director daquilo, que até parece que é de boas famílias, o Mário qualquer coisa, tem um apelido esquisito, mas não parece castelhano. Os castelhanos deu cabo deles o celebrado Condestável, como uma pequena ajuda da padeira. Outra, sobre a saúde: novo sistema acaba com o papel nas urgências. Não se pode acreditar, não é? Então manter o papel é uma elementar questão de higiene e, mesmo com ele, já se sabe a limpeza que por aí vai.

Na secção nacional vem o Dr Carvalhas com um apelo a dizer que é preciso mudar de orquestra. O homem, que passa a vida calado, resolveu também vir brincar ao carnaval. Então quando a malta ensaia o ritmo frenético das danças sul-americanas, atira ao ar cartuchos inteiros de coloridos confetis, sente os pés presos nos montes de serpentinas espalhadas pelo chão, aproveita a confusão e se afiambra no par que sobrou, vem este e manda parar a música como se um respeitável baile de carnaval fosse uma insignificante dança das cadeiras. Alguém acredita nisso?

No caderno local um artigo com o título "Romaria ao funicular dos Guindais já começou". A malta não tem grande instrução, isso é verdade. Depois, para confundir, chamam àquilo funicular de manhã e elevador à tarde. Às segundas-feiras não chamam nada porque a geringonça precisa de descanso. Mas não se confunde aquela porcaria com a santa da Ladeira e ninguém vai em peregrinação para um depósito de sucata. Ainda por cima a pagar um bilhete chamado "andante" para uma coisa que se recusa a mexer-se do sítio e que, depois de dois minutos de subida, precisa de duzentos litros de água e de uma hora de repouso. Para recuperação.

O que vale, de facto, é que seja carnaval. E que ninguém leve nenhuma destas e de outras brincadeiras a mal. A partir da quarta-feira de cinzas é que a porca vai torcer o rabo!

A senilidade prematura


A senilidade é sempre extemporânea e inconveniente. Apesar da idade daqueles que visita é, mesmo assim, invariavelmente prematura. Como neste caso.

O bispo resignatário de Dili, D. Ximenes Belo, desempenhou um importante papel que nunca é demais referir nos longos anos que acabaram por levar Timor Leste à independência. Afirmou-se, adentro de fronteiras, como a voz dissonante, firme e ponderada perante a ocupação e os métodos pouco ortodoxos do poder indonésio.

A comunidade internacional acabou a reconhecer esse papel e a galardoá-lo com o Prémio Nobel da Paz, em conjunto com Ramos Horta, outro timorense resistente e ilustre. Nenhum deles pareceu deslumbrar-se com o facto e continuaram as suas missões.

Depois, de modo prematuro, D. Ximenes afirma não se sentir em condições para continuar a desempenhar o cargo de bispo e pede escusa. Pensou-se que arrumaria as chuteiras, se recolheria e iria descansar dos trabalhos e do longo caminho percorrido. Puro engano! Quando estava tudo tão bem, quando era reconhecido como o artífice que de facto fora, acaba por vir estragar tudo. Manifestando ambições políticas. É-lhe proibida essa disposição? Obviamente que não. O que a mim me acontece é apenas ter a sensação de que, por exemplo, José Saramago, depois de galardoado com o prémio Nobel, se decida a enviar um livro seu a concurso. A uns quaisquer jogos florais de um pequeno concelho do interior alentejano. Não diz a bota com a perdigota!

A nova juíza do processo Casa Pia não tem segurança pessoal


Ana Teixeira da Silva, a juíza recentemente sorteada para assumir a instrução do conhecido processo Casa Pia, ainda não beneficia de segurança pessoal. Nem mesmo o Conselho Superior de Magistratura nem ela própria fizeram algum pedido nesse sentido. O presidente da Associação de Juízes avisa, de forma notavelmente inédita: "mais vale prevenir do que remediar".

Não há, todavia, nenhum problema. O Dr Santana Lopes tem segurança pessoal e está sob vigilância permanente, não tem a Dra Ana Teixeira da Silva motivos para temer pela sua integridade. Ao menos o Dr Santana Lopes não poderá causar-lhe nenhum problema: está sob a atenção vigilante da polícia!

22 de fevereiro de 2004

O Porto exige segurança pessoal para o Dr Rio


O Porto já se habituou a não se admirar com nada e a interpretar tudo como fatalidades do destino. Não se admira que o Futebol Clube do Porto ganhe campeonatos seguidos apesar do Sr Mourinho se queixar da rudeza dos adversários e da parcialidade dos árbitros. Não se admira com a extensão das escavações que cada vez mais se espalham pela cidade e, se lhe disserem que são feitas a pesquisar petróleo, acredita e acha que está tudo bem. Não se admira que o Dr Dias da Cunha diga que as faces visíveis do intrincado sistema do futebol nacional são as dos Srs Pinto da Costa e Valentim Loureiro, embora estranhe que o Dr Pimenta Machado não tenha lugar no pódio. Não se admira de que o Porto tenha obtido o estatuto de património mundial, meio mundo tenha dito publicamente que o facto era uma grande vitória e que, até hoje, se não tivesse dado rigorosamente por nada. Não se admira sequer que o ex-presidente da Câmara, Dr Fernando Gomes, venha manipular números e conceitos teóricos para dizer que o norte - e naturalmente o Porto - estão mais pobres do que eram. Esquecendo-se que foi presidente de câmaras, deputado, ministro e eurodeputado e que da sua acção política em todos os cargos deveriam ter resultado, pelo menos, responsabilidades solidárias. Porque, de resto, não resultou coisa nenhuma a não ser o lugar cativo na tribuna vip do estádio do Dragão.

Não se admira ainda que o Dr Rio tenha vindo a público para alinhar a hierarquia formal dos cargos públicos: Presidência da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro Ministro e Presidente da Câmara do Porto. Mas admira-se que o Sr Pinto da Costa não preceda o próprio Dr Rio e que o Presidente da Junta de Freguesia de Miragaia não venha logo a seguir a ele. Mas já nos habituámos a isso, vamos aguentando, continuando leais e sempre invictos.

Não podemos é tolerar, nem que desenterremos a Maria da Fonte, é que um qualquer presidente da Câmara de Lisboa, que nem sequer figura na hierarquia, possa beneficiar de protecção pessoal por parte de agentes especiais da PSP. Por isso eles faltam onde são necessários, os roubos às bombas de gasolina aumentam, os esticões são mais que muitos, os documentos pessoais aparecidos no entulho, com fotografias irreconhecíveis, não têm conta. Enquanto isso, a quarta figura do estado percorre a pé, sozinho, apenas sob o olhar distraído do seu motorista, os vinte metros que separam o lugar de estacionamento do seu automóvel de serviço da porta que utiliza para entrar na Câmara. Ao fim de semana se vai comer uns camarões a Matosinhos - um concelho hostil, governado pelo régulo Narciso Miranda! - fá-lo por sua conta e risco e se decide ir beber um copo à ribeira de Gaia - outro concelho hostil, mas sem governo nenhum! - nunca sabe se regressará a casa são e salvo.

É preciso que o ministro Figueiredo Lopes, por uma vez, esteja atento a alguma coisa e corrija rapidamente a situação. Não vá dar-se o caso de acontecer alguma desgraça ao Dr Rio. Ou até dele próprio ser demito, no meio da sua permanente distracção, sem ter dado pelo facto de ter sido ministro. Mesmo invisível!

Santana Lopes diz que sabe o caminho


Este facto, de início, quase nos deu alguma preocupação. Se ele sabe o caminho está divinamente inspirado, provavelmente pelas idas às missas de domingo, pelas conversas com o padre Feytor Pinto, pelos cartões de boas festas recebidos da nunciatura.

Mas depois, felizmente, acrescentou que dentro dele há uma matriz, um "chip" programado a repetir, inutilmente desde há vinte anos: "um governo, uma maioria, um presidente". Tranquilizámo-nos! O homem não passa afinal do robot que sempre se pensou que era, resultado da electrónica, programado de alto a baixo, mas a agir sempre da mesma repetitiva forma. Como as máquinas multibanco a repetirem metalicamente, quando a gente se distrai: "retire o seu cartão, retire o seu dinheiro".

O "chip", espera-se, vai ser comido com a mesma voracidade com que o são os seus semelhantes. Quando der por ela está desactualizado e o Miguel de Sousa Tavares pode andar de cara descoberta. Ao menos por isso valha-nos a santa electrónica.

21 de fevereiro de 2004

O exemplar funcionamento da justiça portuguesa


A justiça portuguesa pode funcionar com alguma lentidão, embora ligeira. Mas pode também, e por isso, orgulhar-se de ser isenta, independente do poder político, empenhada e eficaz. É um rotundo disparate estar aqui a escrevê-lo neste momento quando, dois dias atrás, ela deu irrefutáveis provas disso. Felizmente que, para a tranquilidade do cidadão comum, as câmaras de televisão estavam acidentalmente por perto e puderam registá-lo. Ainda mal o Dr Vale e Azevedo tinha posto o pé direito na rua, vindo da prisão, carregando na mão uma maleta de cartão que parecia comprada à compatriota Linda de Suza, e já uma brigada da polícia de investigação se lhe interpunha no percurso. Para, muito educadamente, lhe dizer: "Bem vindo à liberdade senhor doutor. Como está, como se sente e como vai a família? Temos a comunicar a V. Exa. que o meritíssimo juiz da enésima vara criminal de Lisboa o convida para um chá de cidreira que, se for a seu gosto, será acompanhado com biscoitos de sortido húngaro". Nunca poderia um homem de princípios, como o ex-presidente do Benfica, declinar o convite. Até ficou para o dia seguinte e para os próximos.

Quanto à lentidão, são mais as vozes do que as nozes, como diz o povo do Sr Jorge Perestrelo. O Público de hoje vem afirmar, com os habituais zelo e isenção do seu director, que há fraudes fiscais em Trás-os-Montes com desvio de verbas por apurar ao fim de 12 anos. Um pequeno atraso, nem tão grande que mereça reparo, mas está bem. Há mais tempo do que isso estão o Sr Narciso Miranda na Câmara de Matosinhos e o Sr Pinto da Costa no Futebol Clube do Porto e nenhum deles parece cansado!

A investigação leva dez anos, recolheu milhares de páginas - um desperdício de papel inqualificável - que indiciam inúmeras fraudes. Visados, entre outros, o então Director Geral de Florestas e o actual Presidente da Câmara de Boticas. Terão sido indevidamente pagos valores significativos na alegada prática de crimes de corrupção, - que toda a gente sabe não existir em Portugal. O único que discorda é o Dr Dias da Cunha! - peculato, participação económica em negócio, falsificação de documentos, abuso de poder e favorecimento pessoal.

É sempre a mesma coisa: indícios, indícios, indícios. Nunca ninguém sabe, nunca ninguém viu, nunca ninguém lá esteve. Como na história do marido que se julga traído pela mulher e que contrata, a peso de ouro, um detective particular que lhe siga os passos. E este vê-a entrar, acompanhada por um marmanjo de aspecto reguila e ar suspeito, num quarto de pensão. Pelo buraco da fechadura ainda foi possível ver que ambos se despiam, até que o marmanjo tivesse pendurado na chave, pelo lado de dentro, o gorro que trazia enfiado na cabeça. A observação terminou aí e a sua tarefa só prosseguiu, de novo na rua, passadas duas horas. Correu ao seu cliente a fazer-lhe o relato minucioso. Não, não lhe tinha sido possível verificar se tinham assumido posições mais íntimas ou de decúbito dorsal. E o desconfiado marido tem que reconhecer que lhe não trazem mais do que indícios e que, afinal, persiste a eterna dúvida de sempre: ser ou não ser corno!

Apesar das acusações graves os processos têm sido, muito justamente, arquivados. Mesmo que o Ministério Público seja o primeiro a dizer que "existem indícios que fazem suspeitar de autorização de despesas antes do cabimento, de concursos para obras já realizadas, de trabalhos pagos e não realizados, projectos elaborados por funcionários, propostas irregulares, irregularidades nos concursos, desdobramento de despesas, facturas e recibos sem datas e sem destinatários e recibos em duplicado". O arquivamento, todavia, nunca foi decidido sem que primeiro e de forma veemente os suspeitos tivessem negado quase todas as acusações e, quando assumiram alguma, salientaram sempre tê-lo feito sem qualquer intenção criminosa.

Bem diz a exemplar autarca de Felgueiras que não fugiu. Limitou-se a pegar num automóvel que, por acaso, lhe deu o seu ex-marido. Dirigiu-se a Madrid para comprar alguma lingerie de que precisava para as missas de domingo. Passou acidentalmente pelo aeroporto de Barajas onde parou para tomar café. Vieram impingir-lhe um bilhete de avião, a preço de saldo, para um voo a partir dentro de minutos. Lembrou-se que bem lhe saberia o mergulho na praia de Copacabana e que novo alento lhe daria para continuar a trabalhar em benefício dos seus queridos munícipes. Aproveitou! Com espanto e muita indignação - direito que o Dr Mário Soares teve o cuidado de instituir! - soube dois dias depois que lhe tinham decretado prisão preventiva no âmbito de um processo que nem sabe do que trata. Assim, a frio, sem saber ler nem escrever! Agora está exilada, que ela é autarca mas não é burra!

Os modernos métodos de gestão da CP


Crisóstomo Teixeira é o presidente da CP onde, mesmo não havendo lucros, não ganhará o salário mínimo e não prescindirá do uso de carro de serviço, topo de gama, e de cartão de crédito que, como se sabe, são ferramentas essenciais a qualquer inovador método de gestão. Mas ao menos este justifica tudo o que se investir, pelos métodos verdadeiramente inovadores que vem implantando na empresa.

Recentemente e com o pretexto de tornar a duração da viagem Porto-Vigo mais curta decidiu-se pela supressão da paragem na estação da Trofa, a cerca de 20 quilómetros do Porto. Medida de aplaudir, naturalmente. Tempo é dinheiro e enquanto não houver TGV a malta que sai do Porto, de comboio, para ir ao marisco aos restaurantes galegos nunca mais lá chega. Palmas, portanto.

Depois disso, e a pedido de um grupo de excursionistas, permitiu que o mesmo comboio fizesse uma paragem para que se pudesse ir comer uma lampreia à bordalesa, copiosamente regada com um verde tinto de estalo que se produz na região. Claro que a atitude é igualmente de aplaudir. Se os excursionistas não tinham urgência especial em estar à porta do El Corte Ingles, se lhes sobrava o apetite para a lampreia e se tinham dinheiro no bolso que a pudesse pagar, a paragem serviu muito justamente para dinamizar a economia regional. Palmas também, portanto.

O que é pena é que um homem destes esteja a perder-se na gestão de uma empresa pública que custa todos os anos milhões de contos aos bolsos dos contribuintes. Deveria ser aproveitado para tarefas mais nobres e mais de acordo com a sua real vocação e com a novidade dos seus procedimentos. Seguramente o Dr Barroso se não esquecerá dessas qualidades e, a bem do país, as aproveitará. Esperamos que o Dr Sampaio também se não esqueça e tome em consideração o desempenho do homem no próximo 10 de Junho. Agraciando-o e pendurando-lhe ao pescoço a comenda de qualquer coisa. Ele merece!

Um miúdo para o Quadro de Honra


O vitalício presidente da Câmara de Matosinhos, Narciso Miranda, visitou ontem a Escola Secundária de Augusto Gomes no âmbito de uma qualquer invenção sua a que chama "Câmara Aberta" e que, de acordo com as suas palavras, visa estimular os jovens para o exercício da cidadania. O Dr Garcia Pereira, de modo menos refinado, diria que a visita foi feita na qualidade de grande educador das gerações futuras porque, enquanto Narciso sobreviver aos pleitos eleitorais, não haverá sequer gerações presentes!

Assumindo o papel de pedagogo que, como é do conhecimento geral, não resultou com a sua dileta aluna Fátima Felgueiras, foi confrontado com a seguinte pergunta, colocada por um aluno do 11.º ano:

Porque é que existe a ideia de que só vamos trabalhar para o poder local se formos amigos do presidente da câmara?

O que Narciso Miranda respondeu ou tentou responder nem sequer interessa. É um político português, profissional há mais de um quarto de século, não há vício ou manha que não traga na manga. Quanto ao aluno é claro que, no mínimo, merece o destaque de ser incluído no Quadro de Honra da Escola. Por mérito próprio!

20 de fevereiro de 2004

Também a Federação Portuguesa de Futebol não é pessoa de bem


Não acredito que, contrariamente ao que hoje escreveu no Público, o Miguel Sousa Tavares só passe a ter vergonha de ser português na eventualidade de Santana Lopes vir a ser Presidente da República. Apenas por uma razão simples: o que mais abunda são motivos para que tapemos a cara de vergonha pela nacionalidade que carregamos. E não acredito que, em todos estes anos, ele não tenha sido sensível ao menos a um que fosse.

Um pequeno apontamento, por exemplo, recorda-me hoje que em 1996, vitimado por um "very light", morreu no estádio nacional um adepto do Sporting que dava pelo nome de Rui Mendes. Os tribunais condenaram a Federação Portuguesa de Futebol, a que preside o Dr Gilberto Madail - um vilão, está à vista! - a indemnizar a família. De recurso em recurso a Federação tem-se eximido a pagar aquilo a que a justiça a condenou. O que significa que a Federação apenas reconhece e aceita a justiça que passa pela cabeça oca do seu presidente. Que à custa de dinheiros alheios vive como um nababo, viaja nos aviões em classe executiva, hospeda-se em hoteis de luxo e é seguido por grupos de paquetes a carregarem-lhe as bagagens para que se não canse.

A Federação tem a mesma vergonha que lhe transmite o seu presidente e professa os mesmos princípios de honestidade, reforçados pela conduta do Presidente da Liga que acha que tudo é, no futebol nacional e à sua imagem, inatacável, transparente e exemplar. Ser português deixou há muito de ser uma fatalidade: é uma vergonha permanente que não tem nem emenda, nem solução. Fosse o Dr Gilberto Madail um homenzinho responsável, nem sequer seria necessário que fosse homem, mesmo com h minúsculo, e o assunto não andaria em bolandas, de tribunal em tribunal. Porque a Federação não pugna por justiça, - nenhuma vida é ainda avaliada em euros - mas fá-lo apenas pela fuga à responsabilidade e, linearmente, pelo roubo.

O país do circo e da palhaçada


Não nos importaríamos que o país pudesse ser comparado a um circo, se este fosse da qualidade dos de Moscovo ou de Monte Carlo. Mas não é assim. Este nosso circo nacional emprega outros artistas mas, para o público, só actuam os palhaços e, infelizmente, aqueles que melhor fariam em procurar outra actividade.

Só assim se pode entender a palhaçada à volta da hipotética soltura, por trinta segundos, do Dr Vale e Azevedo. Sabe-se, desde sempre, que não há a mínima coordenação entre organismos oficiais, seja sobre o que for. O cidadão habituou-se a que diferentes serviços públicos lhe solicitem a mesma informação repetidamente e vezes sem conta. Está ele, que está preso há anos, revoltado? Anormal seria que o não estivesse, porque revoltada deve estar qualquer pessoa de elementar bom senso. Não propriamente com a prisão dele, que faz parte dos processos em que é arguido. Mas com a forma irracional como as coisas funcionam nesta terra.

Que justiça, de facto, se pode esperar de um conjunto de tribunais de diferentes instâncias, onde muitos dos seus membros se entregam ao exercício de práticas surrealistas? Ou julgam eles ter os predicados dos Srs Breton ou Picasso? Se assim é, mudem-se. Rapidamente!

19 de fevereiro de 2004

Os transportes públicos do nosso contentamento


O Porto, com a mania das contas à sua maneira, tem aspectos rídiculos e provincianos que, como o Dr Rio e os seus antecessores, nos fazem rir. Mas também tem coisas sérias, que devem ser respeitadas, com que se não deve brincar. Antigamente, segundo diziam, uma delas era o trabalho. Nos dias que correm são os desempregados. Daqui a pouco o único homem que trabalha no Porto é o engenheiro Belmiro de Azevedo. Porque precisa e, por isso, o faz mesmo no dia de aniversário. E sendo quase o único a trabalhar vai fazendo crescer o seu pecúlio à custa de incapazes a calaceiros a quem, ainda por cima, paga.

Ontem foi vísivel em Faro a preocupação com o jogo de futebol que ali teve lugar e com a segurança. Dos jogadores, dos árbitros, dos convidados e da própria assistência. Aviões de combate sobrevoaram o estádio a afugentar as gaivotas, peças de artilharia foram apontadas às entradas principais e a polícia de choque manteve-se alerta na conferência de imprensa dos seleccionadores a controlar-lhes os movimentos. Quando menos se espera, segundo dizem, o diabo tece-as! Em Olivença chegou a pensar-se que era desta, que a libertação estava eminente.

Mas o Porto prepara afincadamente a cidade para o início do Euro 2004. O Fubetol Clube do Porto decidiu, por vontade própria, substituir a relva do estádio do Dragão, já em muito mau estado depois dos inúmeros jogos que ali se realizaram depois da inauguração. O Dr Rio, gratuitamente, pôs os motoristas de táxi a aprender inglês e quase todos já, no fim de cada corrida, nos dizem com pronúncia de fazer inveja ao Dr Mário Soares, "ten euros". Os autocarros dos STCP passaram a ostentar dizeres igualmente em inglês, a maioria dos quais não sei o que significa porque não sou taxista.

Nas costas do assento do motorista há uma tabuleta a dizer "driver" que um amigo meu me disse ser o nome de um daqueles paus de jogar aquele jogo da relva e dos buracos, de que os ingleses gostam muito e que parece que se chama golfe. Não entendo a relação, mas acho que fica giro. Escrever lá motorista não tinha graça nenhuma, já toda a gente sabe. A modalidade está a ser um sucesso, não se fala de outra coisa nas lojas dos hamburgueres e comenta-se à ganância mesmo dentro dos autocarros. Tanto que estes, do lado de dentro e por cima das portas, têm mesmo escrito "exit" para o assinalar.

Agora, alguns novos, postos a circular há apenas alguns dias, têm escrito a todo o comprimento "running on natural gas", em letras grandes. Não tenho culpa de não saber o que quer aquilo dizer e para que serve. Fui perguntar a um polícia que conseguiu andar no inglês do Dr Rio fazendo-se passar por taxista. Lá me esclareceu que aquilo era de facto por causa do Euro e que era um aviso a recomendar "ou te piras ou atiro-te com a granada de gás". Admirei-me e perguntei-lhe se a ameaça era feita assim, sem mais nem menos. Respondeu-me apenas "fuck you" mas não traduziu. Pela cara dele penso que era para eu me pirar também!

A heróica inauguração do funicular. Ou do elevador?


Ontem, por razões de ordem pessoal, não estive no Porto. Mal eu sabia o que iria perder porque, se o adivinhasse, poderia o governo cair, o Dr Vasco Pulido Valente publicar a sua crónica antes de tempo ou mesmo o Sr Luís Delgado divulgar os resultados das presidenciais daqui a dois anos e picos que eu não arredaria pé. Queria estar na primeira linha, a gozar o espectáculo e a agitar freneticamente uma bandeirinha da cidade, gritando vivas a Portugal e ao Porto 2001, capital europeia da cultura.

Com pompa, música e circunstância foi inaugurado o elevador dos Guindais. Uma das obras de referência da Porto 2001 que, quando concluída, ninguém sabia se servia para alguma coisa e nem sequer queria pegar nela. Mesmo tendo tido tempo suficiente para lhe escolherem o nome, há dois dias atrás chamavam-lhe funicular, que eu até achei um nome bué de fixe, quanto mais não fosse porque não sabia o que queria dizer. Hoje o jornal já lhe chama só elevador, que é um nome vulgar, qualquer prédio de três andares tem um e às vezes mais.

A cabine, com capacidade para 25 pessoas, foi engalanada, com a bandeira nacional, a da cidade e a do chamado Metro do Porto. Por fora, sem prejudicar a vista de que se pode disfrutar durante o percurso, foram afixados cartazes com as esfinges do Ministro das Obras Públicas, dos presidentes das câmaras de Porto e Gondomar, do presidente do chamado Metro do Porto e ainda do Presidente da Liga de futebol. Como o major Valentim, com muito sacrifício das suas horas de descanso e da sua conta bancária, acumula mais que um cargo o cartaz com a sua esfinge tinha, muito justamente, o triplo do tamanho dos outros. E eu acho que até devia ser maior porque ele, sem ofensa, é assim um meia leca que não tem muito mais de metro e meio.

À hora marcada os voluntariosos Mareantes do Rio Douro já tinham malhado nos bombos para lá e para cá, alguns tinham mesmo as peles rebentadas, as ilustres personalidades perfilavam-se no cais de embarque, felizes e sorridentes querendo ir todas na primeira viagem. Forem embarcando muito ordeiramente, obedecendo à chamada que o Sr major fazia, a lembrar os seus tempos de tropa. Ao vigésimo quinto perguntou "quantos são" como sé seu hábito e disse, elevando a voz "alto e para o baile, não entra mais ninguém".

O Sr ministro já vinha preparado, - quem vai para o mar avia-se em terra! - tirou do bolso a tesoura novinha em folha que trazia, em aço inox, cortou a fita bicolor, verde e mermelho, as cores nacionais, deitaram-se foguetes que estoiraram no ar, alguns transeuntes tiveram que furtar-se à queda das canas, a charanga tocou a Maria da Fonte, toda a gente bateu palmas ruidosamente como se aplaudisse o Sr Quim Barreiros. De peito cheio, de ar e orgulho, o Sr major pensava baixinho: "hoje até podiam ser o dobro deles, aviava-os rodos".

Cortada a fita, foi o Sr ministro convidado a virar o pinxavelho que punha a geringonça em movimento. Nova salva de palmas, foguetes de morteiro, os mareantes capricharam no ataque aos bombos. A cabine, o elevador, o funicular ou lá o que é permaneceram silenciosos e imóveis. Não soltaram um gemido, não se ouviu um silvo, não se deslocaram um dedo que fosse. O Sr bispo do Porto reforçou a água benta, o Sr major benzeu-se, o Dr Rio tirou o terço do bolso, o Sr presidente da Liga começou a matutar que nunca se podia confiar no árbitro sem lhe ter pago antes.

Deve ser excesso de peso, alvitrou alguém que sabia da poda, que sabia como tinham sido as tripas à moda do Porto, generosamente regadas que o cravinho da Índia puxa. Sairam todos, os mais crentes benzeram-se, os outros seguiram-lhes o exemplo, alguns com a mão esquerda, para não parecer mal. Decidiram embarcar apenas dez, alguns ficaram para as viagens seguintes, outros desistiram. Não fosse aquela porra - quarto nome dado à geringonça - precipitar-se pela escarpa abaixo. O ministro, de sorriso amarelo, virou o pinxavelho, os fotógrafos, atentos, registaram o acto, os operadores de câmara gravaram para os jornais da noite, os presidentes das juntas, com lugar nas filas de trás, puseram-se em bicos de pés para também apareceram nas fotografias e nas televisões. A geringonça, sem coração, não se incomodou com a angústia e com a ânsia de ninguém: manteve-se imóvel. Nem o mais pequeno movimento, um curto lampejo uma imperceptível faísca. Nada.

Voltaram a sair, voltaram a entrar, o Sr bispo esgotou a água benta, o Sr major tinha o braço cansado de tanto sinal da cruz, o Dr Rio convocava a vereação e falava em sabotagem, os populares apinhavam-se no cimo da subida para verem a geringonça e o ministro. Alguns já comiam do farnel que tinham trazido, algumas crianças impacientavam-se, queriam era uma pastilha elástica, choravam, as mães prometiam-lhes porrada. Pela quarta vez o Sr ministro deu à coisa - salvo seja! - e surpresa, a geringonça iniciou-se lentamente na subida, os dez passageiros agarraram-se uns aos outros para não baldearem, os mais medrosos encomendaram-se a Deus e aos Santos, pediram a benção ao Sr bispo, foram rezando discretamente para os julgarem valentes, como sempre fica bem nas cerimónias públicas.

No topo da escarpa, longos e dolorosos 280 metros depois, os repórteres atropelavam-se, todos queriam registar as primeiras declarações dos ilustres bandeirantes do funicular. Com ministro ou sem ele, o Sr major não podia deixar também falar, até porque não é mudo e nem sequer gago.Com um sorriso aberto, do tamanho do percurso, declarou "a viagem foi maravilhosa". Ninguém se admirou. Toda a gente sabe que o futebol chafurda numa pocilga que nem vedada é, cheira a merda por todos os lados e o Sr major, que é um optimista, continua a dizer que lhe cheira a perfume Givenchy!

Um desmentido e uma pergunta


Venho aqui hoje assim, logo de madrugada, para pendurar um desmentido e uma pergunta. Com o frio que faz e com a malta a manter-se ajuizadamente no quentinho dos lençóis é pouco provável que venha a ser contestado.

A reforma da justiça fica cara!O desmentido é sobre uma prédica dominical do professor Marcelo e sobre declarações públicas do Dr Júdice, bastonário dos advogados. Ambos disseram que o Dr Barroso era um super-ministro da justiça e que a Dra Celeste Cardona, como ministra, não existia. Já figurava apenas na lista telefónica do Dr Portas, para a eventualidade de algum recado. É mentira! A Dra Celeste Cardona existe, de carne, osso e funções como ministra. Ainda ontem a vi na televisão e esta manhã soube que, afinal, está de facto empenhada na mais elevada reforma da justiça de que há memória. E começou por cima, a nomear pessoal dirigente para cargos onde nós, contribuintes, lhes pagamos ordenados na casa dos 5.500 euros, o equivalente a 1.100 contos. Um dos nomeados é autenticamente um JDEP - entenda-se jovem director de elevado potencial - de apenas 29 anos de idade e apenas licenciado há três. Como experiência profissional, tem a que o tempo lhe permitiu adquirir: nenhuma. Limitou-se a levar à escola os netos da ministra e em passar por sua casa a certificar-se de que o cachorro estava sossegado e ainda tinha ração e água. Mas tem uma vontade incontrolável de se entregar às suas novas funções, acelerando a máquina a que tem direito e utilizar o cartão de crédito no marisco barato que servem em Huelva.

Santana Lopes a exemplicar como pensa com a sua cabeça!A pergunta, embora um pouco tardia, é sobre a telenovela das presidenciais em que iremos maioritariamente abster-nos daqui a mais de dois anos. Disse publicamente o Dr Santana que nunca foi influenciado e nunca cedeu a pressões, fosse de quem fosse. Aqui já eu estava a rir, o que até é raro acontecer-me. Mas disse ainda que sempre pensou por si, sempre decidiu pela sua cabeça. Aqui desatei à gargalhada, num riso pegado, que ainda não parou. Então quem não tem cabeça para nada, ela serve-lhe para decidir o quê?

18 de fevereiro de 2004

O aborto e as 17 absolvições no Tribunal de Aveiro


Defeito meu, se calhar congénito, não há nada a fazer. Muitas vezes tenho grandes dificuldades em compreender determinadas situações e outras há que, de todo e por mais que me esforce, não consigo entender. O Tribunal de Aveiro mandou ontem em paz 17 arguidos que foram julgados por alegada prática de aborto clandestino, por não ter reunido provas suficientes para condenar nenhum deles. Até aqui, tudo bem. Os tribunais são independentes do poder político e devem continuar a sê-lo. Com a certeza de que essa independência não seja comparada à do Dr Bagão Felix perante o partido que o indicou para o governo porque esta é verdadeiramente falsa. Dr Portas nenhum indica para um cargo de ministro uma pessoa que não esteja sintonizada com o partido e que não seja da sua inteira confiança. A falta de filiação partidária - entenda-se a falta de cartão - não tem o mínimo significado. Não se passa a ser mais benfiquista quando se apresenta um proposta para sócio ou quando a direcção a aprova!

Os tribunais têm que julgar no âmbito de legislação que não produziram e que não têm competência para alterar. De forma independente do poder político, limitam-se a aplicar as leis que este lhes espalha em cima da mesa. Não compreendo, deste modo, todo o alarido que durante o julgamento foi feito à porta do tribunal, com manifestações e cartazes apelando à alteração da lei. Ou, pelo menos, não compreendo nem sequer aceito a presença da Dra Odete Santos e do Dr Miguel Portas, por exemplo, no meio daquela gente. É natural, e acontece, que nos julgamentos de província apareçam e se concentrem à porta dos tribunais, amizades, conhecimentos e simpatias das partes. Mesmo que não intencionalmente, são sempre uma forma, mesmo frouxa e indirecta de pressão. Mas limitam-se ordeiramente, e regra geral, a aguardar pelo desenrolar dos acontecimentos. Não passam de acompanhantes dos concorrentes aos concursos de televisão. São inofensivos de todo, não reclamam nenhum outro estatuto e não esperam nenhuma outra atenção.

A presença de políticos profissionais é diferente. E sendo diferente é estultícia, porque não quero crer que a Dra Odete Santos tivesse marcado presença como artista de teatro e o Dr Miguel Portas como economista. É-o por se terem enganado na porta, ainda por cima sabendo-o. Não tenho, por mim, uma ideia definitiva e consolidada sobre o aborto. Mas aceito que a respectiva legislação deva ser revista e mais, em resultado de novo referendo. O poder político, como se sabe, odeia os referendos quase tanto como os eleitores. Quer ser miguelista, perfeitamente absoluto, legitimando-se a si próprio como uma ditadura temporalmente limitada. Representativa sim, sem que se saiba de quê ou de quem. Participativa nunca, em nada e por ninguém.

Mas os políticos presentes, a meu ver, deram um tiro no pé e devem ter ficado sem a cabeça do dedo grande. A Dra Odete declarou mesmo que tinha sido uma decisão exemplar. Se a afirmação pudesse ser verdade estávamos conversados em relação à justiça. A sentença foi o que deveria ter sido, no âmbito e na vigência das leis que a suportaram. Interpretações extensivas serão um abuso e uma rábula. Os abusos não sei onde ou como são tratados. Mas as rábulas ainda sobem aos palcos do Parque Mayer!

17 de fevereiro de 2004

Carolina sal a mais e chá a menos da Costa


Por muito exemplar que seja o futebol, como propaga o Sr Loureiro pai, a verdade é que o mesmo tem vindo a ser palco de intrusões por parte de pessoas que, tendo estudos, não sabem sentar-se à mesa e pegar no talher. Faz falta ao futebol o Sr João Rocha que, no Sporting, conseguiu no seu tempo ensinar os jogadores a sentarem-se à mesa, a comerem de faca e garfo, a distinguirem a sopa de nabos de um pudim francês e a cumprimentarem as senhoras. Os filhos, infelizmente, descontinuaram a actividade e têm apenas seguido os métodos para filtrarem as entradas nas discotecas de que são gerentes.

No norte o panorama não é muito melhor, apesar dos esforços da família Loureiro, um exemplo de boas maneiras adquiridas na tropa. E o patriarca, que ainda utiliza um posto militar antes do nome, que o diga. Mas, mesmo assim, faltam maneiras, apesar das pessoas terem frequentado escolas nas Fontaínhas e acabado, por vezes, nos bancos da aristocrática Católica. Ninguém parece ler os livros, perfeitamente essenciais, da D Paula Bobone, o que é uma pena.

No domingo passado o casal Pinto da Costa, terceira edição, viajou para Lisboa. Mais precisamente para o novo estádio da Luz, para assistir ao Benfica - Porto. O Sr Pinto da Costa, todas as câmaras o focaram, foi sentar-se no banco, na companhia dos Srs Mourinho e Reinaldo Teles, para fiscalizarem a equipa de arbitragem e darem uma ajuda aos jogadores se ela viesse a ser necessária. A senhora de Pinto da Costa III meteu à carteira um dos convites recebidos, solicitou o acompanhamento de uma equipa de guarda-costas e dirigiu-se ao camarote presidencial. O Sr Luís Filipe Vieira, que teve explicações de etiqueta com a D Paula, levantou-se solícito para receber Sua Excelência, cumprimentá-la, agradecer-lhe que tivesse vindo e indicar-lhe humildemente o seu lugar. Começou por estender-lhe a mão, baixa para que a senhora não pensasse que ele lhe ia dar algum estalo e para que os guarda-costas se mantivessem tranquilos, embora vigilantes. Ficou de mão estendida como se fosse um cachorro a obedecer às ordens disparatadas do dono porque a senhora achou que não tinha que cumprimentá-lo. Claro que não tinha, se tivesse ficado a ver o jogo na companhia do Bobby e do Tareco com quem, dizem, se entende às mil maravilhas. Nem por causa da ração se desentendem.

O Sr Loureiro pai anunciou já a realização de acções de formação que possam melhorar o comportamento das pessoas em relação a aspectos sociais de tal importância. Luta é com dificuldades para arranjar sala com capacidade para tanta gente porque muita há que precisa de ser reciclada e mais do que uma vez. Como o lixo.


Arranja-me um emprego


O Dr Manuel Monteiro é aquele rapaz magro, de óculos grossos e olhos míopes encovados nas órbitas, que militou na juventude do CDS até ser presidente. Dedicou-se ao partido, desleixou os estudos, foi subindo na hierarquia. Não se sabe como nem quando teve uma aberta, foi tirar o canudo, neste país sem se ser doutor não se consegue ser coisa nenhuma na vida. Nem vereador!

Por limite de idade, no partido, passou aos seniores. Ensaiou palavras de ordem, slogans eleitorais, fez o esquisso de cartazes, foi eleito deputado, chegou de novo a presidente. Sempre com o seu inseparável amigo de peito, Paulo Portas, a dar-lhe a sombra protectora e o itinerário para o paraíso. Até que este, cansado da sacristia e aspirando ao sabor requintado dos doces de convento se rebelou. Em Braga, terra de tão antigas tradições cristãs, à vista do cónego Melo. A revolução triunfou, o Dr Monteiro perdeu o emprego, não recebeu a indemnização que lhe era devida e incompatibilizou-se com o patrão.

Fez a travessia do deserto do Sahara, para lá e para cá, sem um cantil de água com que pudesse dessedentar-se, sem um camelo que lhe pudesse dar descanso às pernas, sem um oásis onde, para além de piscinas de águas tépidas pudesse haver algumas odaliscas para o relaxamento. De regresso a casa recebeu, às dez da noite, uma chamada telefónica de um conhecido banco da nossa praça a oferecer-lhe um crédito pessoal em condições que nem sequer dá para acreditar. Aceitou, mas sob condição: não poderia nunca revelar à Deco que condições eram essas, de que beneficiava.

Meteu ombros à tarefa de fundar um partido novo em tudo. Na designação, nos estatutos, nos militantes, no projecto. Até ele iria mudar. Começou pelos óculos e da roupa interior nada se sabe, mas há quem assegure que usa boxers com o twetee estampado, a amarelo, na braguilha. Começou por se candidatar a presidente do novo partido e, de seguida, a eleger-se.

Daí para cá, realmente, tudo mudou. O Dr Monteiro é imparável e onde as câmaras de televisão chegam apenas um conhecido adepto do Futebol Clube do Porto consegue chegar-se à frente antes dele. Quase todas as semanas consegue beneficiar de seis linhas num dos jornais que se publicam. Na manhã do último domingo, à saída da missa, foi mesmo cumprimentado com deferência por dois casais de reformados. A filha de um vizinho do andar de baixo trata-o carinhosamente por padrinho e o porteiro do prédio onde mora insiste em curvar-se à sua passagem e em trata-lo por "senhor presidente". Dá-lhe alento!

Já anunciou ser candidato à junta de freguesia, à câmara municipal, ao parlamento europeu. De novo à presidência do partido, - como querido líder - ao parlamento nacional. Sem ninguém lhe pedir nada não quis correr o risco de se esquecer e anunciou o seu apoio a um dos candidatos, que não existem, à presidência da república. Nos últimos dias reafirmou o seu apoio ao candidato que, só Deus sabe, há-de ser ou não ser. E adiantou que se não fosse, ele próprio avançaria com a sua candidatura. Espera-se a reacção do herege Santana Lopes que, se for muito mais burro do que é permitido por lei, há-de optar por se manter na arena. Para ser tratado abaixo de cão na TVI e seguramente humilhado nas urnas pelo Dr Monteiro. Enquanto, em fundo, o Sérgio Godinho continuará a cantar o "arranja-me um emprego".

A peixeirada laranja das presidenciais já começou

Dizia a minha avozinha, que Deus tem porque era uma santa, quando se referia aos naturais da freguesia que tinham demandado Lisboa e que por lá se entretinham a empinar copos de três ao balcão das tabernas do Cais do Sodré, a coçar o cu das calças pelas paredes da estação do Rossio e a conspirar contra o regime do Dr Salazar porque, apesar dos excedentes de produção, não baixava o preço do copo, que eram pessoas que não prestavam, que por lá andavam, na política. Sempre lhe dei razão embora nunca concordando com ela. Sempre lhe dei razão porque o respeitinho era, nessa época, uma coisa muito bonita. Respeitavam-se os pais, os avós, os professores, o pároco e, de um modo geral, toda a gente. Hoje a palavra deixou de ter significado, caiu em desuso, não consta dos dicionários e até a erudita Dra Edite Estrela se não recorda já muito bem de quando deixou de a aplicar.

Mas nunca concordei com ela porque, como jovem excessivo, a bebedeira ao balcão de uma taberna de Lisboa, virando copos e engulindo pasteis de bacalhau, era o máximo a que um provinciano, depois de ter ido à escola, poderia aspirar. Mesmo assim tinha alguns assomos de honestidade e achava que as palavras da minha avó eram também demasiado injustas para a malta de indigentes, néscios e pequenos marginais que semalmente enchiam a camioneta a caminho da capital. Achava que não mereciam um tal insulto e, se enveredavam pela política, não era pelo que lhes tinha sido ensinado pela professora primária. Seria das leituras, dos livros da falecida Agência Portuguesa de Revistas em cujo enredo, para triunfar, bastava ter um coldre pendurado à cintura, com uma pistola, e ser capaz de sacar dela e premir o gatinho mais rápido que a velocidade da luz.

Apesar de o usar agora, acho que o vocábulo peixeirada é inadequado e atentatório do bom nome das peixeiras que, de canastra à cabeça, ainda percorrem as ruas da cidade, visitando regularmente os seus velhos clientes que se mantêm vivos. A mim, pessoalmente, nunca me enganaram. A sardinha, o carapau e a chaputa que apregoam, vivinhos da costa, sempre foi aquilo que me venderam. A preço justo, muitas vezes a pagar no fim do mês, porque o ordenado sempre se me acabou ao dia quinze.

Mas a mais de dois anos de distância, quando o Dr Sampaio, à bolina, navega tranquilo a meio do seu segundo mandato, há gente nervosa, que se infiltra como agentes secretos nos copos de água dos casamentos para que não receberam convite, faz por ser vista à entrada das igrejas, gesticula por um lugar na tribuna das manifestações culturais que são os desafios de futebol e lamenta não poder ser filmado ao lado do Sr José Mourinho quando o mesmo, sabiamente, se pronuncia sobre o estado da erva e a desordem da areia em que a mesma medra.

À semana o governo segue as orientações do Dr Barroso para, ao domingo, o professor Marcelo se sentar a despacho, nem sempre observando as recomendações dos pareceres que lhe submetem. Não está prevista a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a legitimidade que seja. Há dois dias o professor Marcelo, que é muito religioso e que vai sempre à missa antes de se sentar para despacho, oficiou empenhadamente uma cerimónia fúnebre, encomendando aos anjinhos um corpo ainda quente, mas inerte e vazio que apenas se mantém de pé à custa do betão e, à noite, à custa de luzes feéricas e de músicas ultrasónicas.

Como acontece nas paróquias de província, nem sempre os fiéis estão de acordo com o padre, embora lhes fraquejem as pernas de medo com o conteúdo das prédicas que lhe ouvem do púlpito abaixo. Alguns organizam-se, socorrem-se das criancinhas que ainda têm na escola, exigem que o bispo transfira o indesejado para um sítio próximo da raia. Porque até foi capaz de criticar o Sr presidente da junta, um homem tão bom, tão simpático e que dá sempre para todos os peditórios. Outros são mais afoitos, nem reunem tropas, insultam o padre, espalham o boato de que se embebeda todos os dias, de que come como um alarve, - sendo apenas um abade! - que não visita regularmente o lar de idosos e que anda metido, por debaixo da sotaina, com duas catequistas e uma rapariga que serve em sua casa. Às vezes referem mesmo os muitos filhos que tem e cuja paternidade não assume, escudando-se na história do celibato e da castidade.

É esta peixeirada que já para aí vai, na praça pública, à conta de umas eleições que estão a mais de dois anos. Com a particularidade dos intervenientes principais terem aprendido a ladaínha no mesmo seminário, ajudado à missa na mesma igreja de bairro e usarem batinas da mesma cambraia, em tons de laranja forte. Revelando em público os segredos que as carenciadas viúvas de véu negro que vão à confissão lhes confiaram em sussurro.E ainda dizem que somos um povo que não trata de nada com antecedência e que vai entregar a declaração do IRS no último dia do prazo. Decerto que o Dr Cunhal exclamaria: olhem que não, olhem que não!

16 de fevereiro de 2004

Todos contra o incauto espectador

A televisão de serviço público acaba de lançar na sua grelha de programas um hipotético concurso que, parece, vai dar pelo nome de "Um contra todos". Uma mentira a somar às muitas com que nos vem presenteando, a começar pelo serviço público.

Desde logo o programa socorre-se de uma encenação perfeitamente dantesca, muito a propósito da nenhuma massa encefálica que armazenam as cabecinhas, pequeninas, de quem dirige a casa. Depois um apresentador inenarrável em tudo, até no nome. Perfeitamente a condizer com o resto. Mais cinquenta concorrentes, todos numerados com rodelas grandes, como se fossem presidiários, e que lá estão para bater palmas, responder a perguntas ofensivas para a cultura geral dos frangos de aviário e para serem afastados, sem proveito, sem glória, sem nada. Ainda mais um, o concorrente de facto, esparramado numa cadeira que algum serralheiro imaginou ser o máximo do disaine nacional, a que chamam trono e que elevam à altura dos trapézios de circo, para que não fuja a meio.

Para acabar, um genérico que não lembra ao diabo. Cada nome e cada função são acompanhadas de sonoros rebentamentos, como se se tratasse da paz no Iraque e dos muitos sangrentos atentados que a perturbam. Realmente! Mesmo não querendo, mas por uma questão de cultura, anuncio definitivamente a minha conversão a canais codificados de que não digo o nome. Sempre se corre o risco de aprender qualquer coisa!

Notícias do Porto 2001, capital europeia de cultura

Porto 2001 ainda continua em 2004!Se alguém nos ler será legítimo que estranhe que venhamos aqui afixar notícias do Porto 2001, capital europeia da cultura, quando decorre o terceiro ano posterior ao termo daquele em que o acontecimento se verificou. Mas isso acontece porque, como o país, esses poucos leitores têm andado mais distraídos do que deviam.

Gozavam os lisboetas com a anedota do Metro do Porto, e tinham alguma razão. Agora temo-la todos e podemo-nos rir em conjunto. De facto ainda nos não constou que já tivesse sido inaugurada a linha do de Lisboa que passa pela estação do Terreiro do Paço. Nem, que o saibamos, o Dr Santana Lopes terá mandado espetar um painel gigante em cada uma das esquinas da praça a dizer: "Já viu que estamos aqui a tirar a água toda para os combóios poderem passar?".

Mas o Porto 2001 não foi e ainda não deixou de ser maior anedota do que a do Metro. A rua onde se situa o Coliseu, onde o evento foi solenemente inaugurado com a presença da rainha da Holanda, foi pavimentada à pressa, para se apresentar de cara lavada quando sua magestade chegasse. Depois então seriam as obras completadas como devia ser. Não foram, até hoje!

As ruas e os passeios que foram pavimentados de novo estão em petição de miséria desde o dia seguinte. O paralelo foi arrancado, uns pinos espetados nos passeis para evitar o estacionamento foram partidos, torcidos, arrancados. Algumas peças de ferro forjado que cobriam as floreiras nos passeios já desapareceram e, que se saiba, ninguém apareceu a vendê-las na feira da Vandôma.

Na fronteira entre o Porto e Matosinhos construiu-se um mamarracho a que, pomposamente, chamaram edifício transparente. Depois de pronto ninguém sabia que uso dar-lhe, e continua a não saber. Está ao abandono, camarata permanente dos ratos dos esgotos e gaivotas velhas e doentes.

Estenderam-se linhas para a circulação de eléctricos. Nunca por lá passou nenhum e receamos que nenhum há-de passar durante este século. Depois, no próximo, certamente o Dr Fernando Gomes, de novo na Câmara, há-de trazer até nós o Porto 2101, capital de qualquer coisa. E requalificar os melhoramentos então seguramente obsoletos.

Praças emblemáticas foram deixadas esventradas depois dos inconfessáveis interesses da construção civil terem plantado parques de estacionamento subterrâneos. Repor pavimentos era, segundo se disse, responsabilidade da Câmara. Esta, a custo, fê-lo em alguns sítios, ameaça fazê-lo quando tiver dinheiro noutros e chegou ao ponto de embargar as obras noutros ainda.

A velhinha Sé do PortoMas a próxima quarta-feira vai ser dia de festa. No âmbito do Porto 2001 construiu-se aquilo a que se chamou depois o Funicular dos Guindais, com 286 metros de extensão e um desnível de 61 metros. As cabines têm capacidade para 25 pessoas e, supunha-se, serviriam para trazer gente da beira rio para cima e inversamente. Acabadas as obras ninguém sabia quem e como iria a geringonça ser explorada. Tinha custado uma fortuna e ninguém a queria. Dificilmente poderá ser rentável. Lá se acabou por impingir a exploração daquilo ao Metro do Porto. Há poucos dias, mas atempadamente porque o atraso não é assim tão grande, o Instituto Nacional do Transporte Rodoviário emitiu autorização para que a coisa funcione. Daqui a dois dias, coincidindo com a visita ao Porto de Sua Excelência o Senhor Ministro das Obras Públicas, professor Carmona Rodrigues, o funicular vai entrar em funcionamento. Nesse dia andará abaixo e acima, num corrupio, superlotado, com tantos passageiros que não caberão nas cabines. Todos à borla. D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto, que mora quase ao lado irá benzer a geringonça, as autoridades civis e militares. E aspergir água benta pelas imediações. Os sinos da velha Sé tocarão melodias de festa e os marginais fugirão Rua Escura abaixo, a fugir deles todos.