19 de março de 2004

Será que a publicidade encurta o caminho para o Céu?

Estamos todos tão descrentes da realidade política que nos rodeia, tão incredulamente magoados, tão habituados às diatribes inúteis e aos furiosos pontapés no mobiliário em recintos públicos, que deixamos quase passar despercebidas situações que numa comunidade civilizada, em que se respeitassem valores de integridade, levariam a elementares rupturas.

Há uma semana atrás os jornais apareceram cheios de publicidade à morte do pai do presidente da Câmara de Matosinhos, Narciso Miranda. A morte é, para todos nós, um assunto difícil de gerir, muito mais ainda quando se trata de alguém muito próximo. Como o pai. Entende-se a dor, manifesta-se a solidariedade necessária, deixa-se que as pessoas se recolham à sua intimidade e à sua dor.

Mas este desenlace foi publicitado por todos os jornais, em anúncios de grandes dimensões e, em Matosinhos, ninguém que tenha ligações à Câmara ficou de fora. Fê-lo a Câmara, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, a Matosinhos Sport, a Associação para a Animação de Matosinhos, a Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos, a Matosinhos Habitat. Os custos, segundo uma estimativa da revista Focus, terá rondado os 25.000 euros, o equivalente a 5.000 contos. Quase o correspondente ao salário mínimo de cinco pessoas durante um ano inteiro. Com dinheiros públicos, é claro. Porque, mesmo estando lá quase desde a idade média, o presidente Narciso Miranda não é dono da autarquia.

O assunto é melindroso e tem havido alguma relutância em abordá-lo. Mas o descontentamento e a desaprovação têm lugar mesmo no interior do Partido Socialista, a que desde sempre Narciso pertence. Infeliz, por caricata e grotesta, foi a explicação dada pelo vereador socialista Fernando Rocha. Por um lado porque anuncia que não houve irregularidade nenhuma, tanto mais que a oposição não levantou a questão na última reunião da edilidade e este pormenor constitui, a ser ver, sinal suficiente de legalidade. Depois porque, quanto aos critérios, esclarece: "considerámos que as pessoas iam gostar de saber para, solidariamente, dar um abraço ao presidente da câmara".

Pergunta-se agora, humildemente, deste canto: e as pessoas sabem melhor e mais depressa quando os anúncios são de página inteira e publicados em jornais de norte a sul do país? E quanto ao abraço de solidariedade: já acabou a fila? Já está descongestionada a central telefónica da câmara? O ritmo do expediente já observa de novo a cadência normal?

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