9 de agosto de 2004

Se não fosse trágico...

Portugal seria o país do riso eterno, apesar do sobrolho carregado e do ar macambúzio dos portugueses. Seria! Se não fosse o frágil argumento das quotidianas tragédias gregas que nos trazem as lágrimas aos olhos e a comoção vacilante à voz com que falamos. O país não se espalha em desgraças múltiplas: são múltiplas desgraças que se espalham pelo país! O país, como qualquer escolar, espalha-se logo de princípio, nos erros ortográficos do ditado e na sintaxe surrealista da redacção. Ou escorrega no cálculo aritmético de qualquer simples percentagem do PIB, embora calcule mentalmente o valor de pi com cinquenta e oito casas decimais.

O país não escorrega, embora o ditado garanta que quem escorrega também cai. O país está a cair, de norte a sul. No Porto os edifícios em ruínas ornamentam as ruas e os locais mais nobres e mais históricos. Numa simbiose perfeita entre público e privado. Na incúria e no desleixo andam de mãos dadas, creio mesmo que se invejam e que à noite, à socapa, se deitam na mesma cama e mantêm relações de incesto . O ministério da Justiça anuncia o seu propósito de assegurar receitas extraordinárias no bacará e de investir parte dos lucros - contando com o ovo no cu da galinha - na aquisição de edifícios para alojar, com dignidade, os seus serviços e os seus funcionários. Enquanto a Justiça manifesta a intenção de comprar edifícios outros ministérios deixam ruir construções e monumentos. O Palácio do Freixo tem a assinatura de Nasoni, arquitecto a que o Porto está umbilicalmente ligado para sempre. Foi um conjunto de escombros, pasto livre de silvas e ervas daninhas, até que a Câmara promovesse a sua recuperação. A reconstrução custou uma fortuna que teria sido melhor utilizada na construção de habitação social ou no aumento dos vencimentos da vereação. Para ainda não ter destino definido.
Serviu para que o comissário José Barroso lá reunisse o governo uma vez e decretasse que o Douro não voltasse a transbordar. Depois para uma exposição sobre o gheto de Varsóvia que Rui Rio não sabia bem onde alojar e que não queria que atravessasse o rio. E, mais recentemente, para que Santana desse a ilusão de regionalizar a dívida da câmara da capital e o défice do orçamento e manifestasse preocupação pelas elevadas taxas de desemprego que afectam o distrito.

A cidade que Fernando Gomes diz orgulhar-se de ser património mundial cai aos bocados. Ele assobiava para o lado, quem lhe sucedeu mijava de alto, quem lá está parece que toca harmónica de boca. Um ou outro invisual, para não dizer cego, permanece sentado às esquinas, tocando concertina na expectativa esperançosa da moeda. Quando, por insondáveis razões da física, um edifício se desmorona o país para, os responsáveis abrem a boca de espanto e a polícia interdita a rua fronteira. Como a semana passada aconteceu em Lisboa onde o aluimento de ruínas a que ainda chamavam prédio e de que se cobravam rendas. Com tanto azar, segundo o presidente da vereação, que a física não cedeu aos apelos de que adiasse a queda por uma semana. Se o tivesse feito, teria sido derrotada. Hoje, religiosa e pontualmente, estariam a ser iniciadas obras coercivas, a mando da própria câmara. Ficaram desalojadas algumas cinquenta pessoas, o que não é nada se comparado com o número de metros que mede o raio da Terra ou mesmo com a lotação do estádio da Luz ou a quantidade de euros que albergam as contas bancárias do seu presidente.

Alto e bom som, de fato e gravata, barba feita e cabelo domado à força de brilhantina, um senhorio veio logo dizer publicamente de quem era a culpa. Quando um prédio cai a culpa é do Estado. Quando um prédio cai a culpa é do congelamento das rendas. Fossem estas razoáveis e todos os senhorios formariam fila às portas das câmaras a requerer licenças para obras de conservação e de restauro. Como se verifica com os arrendamentos que são posteriores ao terramoto de 1755 e ao Marquês de Pombal. A porta de entrada avaria? Ninguém a repara. As lâmpadas dos patamares fundem-se? Ninguém as substitui. Os esgotos entopem? Ninguém os desimpede. A questão, naturalmente, não se esgota aí e ninguém sabe nem onde e muito menos como se esgota.

Mas em Portugal, como sempre, não se assumem responsabilidades: descartam-se. Prolixa, a televisão aproveitou a derrocada e o encerramento das ruas adjacentes e montou câmaras. Com brilhantes estagiários agarrados a microfones como se fossem gelados da Olá. Orgulhosos na sua qualidade de repórteres com todo o bairro a apontá-los a dedo quando no dia seguinte entrarem no café. Dissertam, fazem perguntas graves e inteligentes, sorriem para a família em casa, presa ao sofá, fremente de emoção. Maria quer ser uma estrela, Ana gostava de ser uma princesa. Onde dormes tu? No chão! Onde tomas banho? Dentro do alguidar! Explicítas a culpa do Estado e do congelamento das rendas. E de nós todos também!

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