29 de dezembro de 2004

A campanha

Na minha freguesia, incluindo o presidente da junta, está tudo em pânico. Terra desgraçada aquela, em má hora incluída nos itinerários do demónio, onde tudo sai ao contrário. Por decoro e algum temor a Deus e ao senhor prior, não lhe revelo o nome. Mas sempre digo que fica no Portugal profundo, aquele de que falam os políticos sem saberem o que dizem, o que é isso e muito menos onde fica.

Alguma sorte se deve agradecer ao facto do ribeiro ter secado. A levar água certamente correria para a nascente, trepando monte acima, submergindo cepas velhas e oliveiras novas. Quando a escola precisou de um novo professor o presidente da câmara veio em procissão fazer uma visita, o presidente da junta convocou a população, solicitou algumas galinhas para oferenda a sua excelência, acertou com o grupo folclórico uma exibição ao ar livre, recomendou o uso de fatos domingueiros. Sua excelência chegou sob o palio que cobre - salvo seja, que aquilo não é nenhum prostíbulo! - o prior na procissão da festa grande, por entre o barulho de foguetes a rebentar, com a banda a atacar com determinação As meninas da Ribeira do Sado. No meio de tanta gente que o acompanhava só vinham varredores, o juiz da comarca, o cabo da guarda, o conservador que assenta os nascimentos e passa os óbitos, o director da escola cêmaisesse e o não sei quê da escola cêmenosesse. Professor, nenhum!

Agora, pelo telefone, que a freguesia está evoluída, o presidente da câmara chamou o presidente da junta para que lá fosse, que precisava de lhe falar. O homem que é madeireiro antes das horas do expediente, levantou-se quando ainda era lusco-fusco, tinha tomado um banho de véspera, limpo o surro das unhas à custa de um graveto, desfez a barba de quatro dias, vestiu o fato com que acompanha os mortos ao cemitério, meteu o pescoço na gravata que está sempre de nó feito e arrimou-se. Na Toyota de caixa aberta em que vai ao negócio dos queimados e com que se faz ao caminho para o piquenique com a família amandou-se estrada fora e serra acima.

O contínuo, solícito, numa farda de general parecendo o comandante dos bombeiros, fez-lhe uma vénia, mandou-o subir ao primeiro andar e ao gabinete do presidente, ainda lhe ouviu qualquer coisa por entre dentes, melhor seria não ter ouvido, não há-de perder pela demora. O presidente tinha a porta aberta, levantou-se da secretária, caminhou em sua direcção, ainda chegou a pensar que se viesse com más intenções o virava com um murro nas trombas, pronto, que se fodesse o emprego e a ganância. Mas não! Ali havia merda! Estendeu-lhe a mão, tratou-o por senhor presidente, simulou um abraço assim de longe como se fosse na missa de domingo, afastou-se e sacudiu os bocados de carqueja que se lhe prenderam às calças. E falou!

Você sabe que em Fevereiro vai haver eleições, democraticamente toda a gente deve seguir a sábia orientação do senhor prior, santa como é, dita como o sermão do púlpito abaixo. Mas o nosso governo nem descansa com o tanto que se preocupa connosco e com o nosso bem estar. A preocupação com a província é a prioridade deste governo, tanto assim que o próprio primeiro ministro se deslocou já à região saloia e à Malveira da Serra e o ministro da defesa esfarelou os miolos a fazer contas para comprar quatro submarinos que a gente há-de poder visitar na doca do Alfeite, com bilhetes a um euro. E você nem sabe que distância vai do Terreiro do Paço à Malveira da Serra nem, talvez, quanto custam quatro submarinos. E da doca do Alfeite já ouviu falar? Se calhar nem do Jardim Zoológico!

Agora estive numa reunião com o senhor governador civil, um homem a quem o concelho tanto deve, católico praticante, sempre a distribuir esmolas à saída da missa, mesmo aos pobres, que me deu orientações para prepararmos a recepção ao senhor primeiro ministro que nos vai dar a grande, enorme, subida e elevada honra de passar pela nossa terra durante a campanha eleitoral. Fará uma curta paragem no adro da igreja, que aquilo é homem de muita ocupação a quem não sobra tempo, apenas para acenar ao Zé povinho, beijar duas criancinhas que devem vir de bata branca e cara lavada e apertar a mão ao senhor prior, ao carteiro que assegura o funcionamento dos correios e ao presidente da junta. Agora você veja se se esmera, corte o cabelo, faça a barba, a sua mulher que lhe engome o fato, engraxe as putas das botas, sacuda a terra da porra das bainhas das calças. Passe pela minha assessora de comunicação que lhe dará uma gravata nova, já com o nó feito. Eu estrago-vos com mimos, mas vá lá. É para o bem da freguesia, para o desenvolvimento do concelho e para a salvação da Pátria! O que eu me sacrifico pelo bem público...

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