31 de janeiro de 2005

Património

Tenho, desde sempre, uma devoção de fascínio por tudo quanto possa ser parte da nossa memória colectiva. Sinto como autênticas traições os muitos atropelos de que os diversos segmentos dessa memória são vítimas. Tudo quanto nos precede, nesta caminhada contínua contra o tempo, faz parte dessa memória. Os ribeiros e os rios que escondemos, abandonámos ou deixámos mesmo secar. As árvores que nasceram espontaneamente ou que alguém plantou para deleite do futuro. Os edifícios, os monumentos, as pontes que deixámos de lado, como coisas imprestáveis, entregues à ruína, à derrocada e à especulação. Não creio que nesta cidade, onde não nasci, alguém tenha legitimidade para mandar arrancar os plátanos do Marquês de Pombal, mudar o nome ao Largo da Aguardente, erigir um mamarracho no Largo da Sé ou chamar requalificação ao vazio da Praça de D. João I.

Sem pretensões, sinto um prazer enorme ao fazer este apontamento. Primeiro pelo facto de um significativo conjunto de árvores, em diversos pontos da cidade, ter adquirido o direito a ser considerada coisa digna e respeitável. Sem merecimento mas simplesmente com justiça. A justiça que devemos, como memória, a tudo o que nos antecedeu. Depois porque isso resulta da iniciativa lúcida e determinada de Manuela D. L. Ramos, Maria P. Carvalho e Paulo V. Araújo, os responsáveis pela manutenção do excepcional blogue Dias com árvores. Um sítio também da minha devoção pessoal, actualizado diariamente, onde em cada dia aprendo, fascinado, mais algumas coisas que desconhecia.

Está de parabéns a cidade como o estão todas as árvores que acabam de ser classificadas. Está de parabéns o blogue e aqueles que o assinam, pelo reconhecimento do trabalho desenvolvido. Que não foi ignorado e que se não permitiu que fosse desperdiçado. Saibamos nós todos, de futuro, olhar e cuidar de todas elas com o muito respeito que merecem.

Estado de choque

A vinte dias de se realizarem, as próximas eleições são já as eleições do choque. Seja qual for o partido vencedor, - uma vez que os eleitores estão impedidos de concorrer! - o resultado será sempre um choque. Em primeiro lugar nosso, pela estupefacção: então em mais de trinta anos de democracia o país não foi capaz de nos oferecer melhor merda?

Depois cada partido nos confrontará com um choque diferente. O CDS, por cognome PP - de Paulo Portas! - propõe-nos um choque de valores: muitos valores de um lado, poucos valores do outro. Ou seja, por exemplo, o grupo Mello com as auto-estradas e os hospitais de um lado e o Francisco, sem abrigo residente nas arcadas do falido Hotel Corcel - antigo roteiro de putas, pederastas e artistas de circo! - do outro. Com o plumitivo primeiro-ministro a querer equilibrar o orçamento em 2009 e o Francisco ainda vivo e a comer, por caridade, uma deslavada sopa diária. Mesmo que seja com a ajuda de um garfo, prejudica sempre.

O PSD, por saudosismo também apelidado de PPD, propõe-nos um choque de gestão. Com um líder irreverente que já chefia um governo de gestão - indigestão, congestão, sugestão! - que outro choque nos poderia propor? Naturalmente, a continuidade! Com o endividamento crescente, alguns ministros gozando férias na ilha do Príncipe, outros invocando a iliteracia de professores de direito para comentarem a versão famosa do Grande Irmão, que em dialecto da noite se escreve Big Brother e se lê mais ou menos biguebrader, conforme a taxa de alcolémia. Prenunciam-lhe alguns a dispensa ao desbarato, como frango já cadáver, de churrasco e já trinchado, no decurso da contagem.

O PS que, por receio da pirraça que lhe faria o reformado Carvalhas, ainda não mudou o nome para PDS, embora o Dr. Mário Soares mantenha a chave no bolso pequenino do casaco, propõe-nos um choque tecnológico. Assim um género de sociedade toda para a frentex, como se tivesse sido imaginada pela mente diabólica do Bill Gates, em que o sexo já não é preciso nem para fazer filhos. Será tudo por vídeo-conferência e utilizando um cartão único com um "chip" que servirá para levantar dinheiro nas máquinas do multibanco, conduzir automóveis, mudar pneus, ser eleito administrador do condomínio e atingir o número de orgasmos que se quiser, um função do saldo disponível ou do crédito obtido. Do género do quer dinheiro, vá ao Totta. Que, só para chatear, é espanhol como as laranjas, os detergentes e metade do vocabulário da Rititi.

O PCP ainda treina o choque à porta fechada para que não haja espiões a copiar-lhe as ideias. Assim como faz o Trapattoni para perder com o Beira Mar e o Fernandez para ser aviado pelo Braga - melhor do que aquilo Jesualdo, nem no maximbombo a caminho do Ferrovia! - com a facilidade que se viu e que logo deu azo a esta super sacanice. Mas já se adivinha o choque de velhas ideias e de novas pessoas. Sem grandes sobressaltos porque as transições se querem pacíficas e sem sangue. Já ninguém se imagina a chegar ao Passeio Público a erguer-se do apertado bojo de um tanque de lagartas.

30 de janeiro de 2005

Encruzilhada

Têm razão os poucos que, por aqui passando, me acusam de perseguir uma vertente essencialmente política. Têm ainda mais razão se acharem que não levo a política a sério. Que a refiro com ironia, de forma sarcástica, depreciativamente. Têm razão ainda se entenderem que não alcanço a ironia desejada, falta quase todo o fel ao sarcasmo, não é afinal tão depreciativo o tom em que se enredam os comentários. A intenção confirmo-a, o demérito reconheço-o!

Mas digam-me como se pode levar a sério a política de um país onde um jornalista do bota-abaixo trai aquele que dizia ser o seu melhor amigo, se apodera de um pequeno partido, chega a ministro da defesa e do mar - e não da defesa do mar! - e se faz fotografar em pose de estado, ao lado da bandeira nacional. E que, num quadro de revista à portuguesa, se rodeia de meia dúzia de apardalados seguidores, anuncia a composição do seu governo e, de seguida, parte para a elaboração do programa e para a formalização da candidatura a deputado? Que anuncia a descoberta do século: a competência é útil a Portugal, e deixa de pé dúvidas quanto à China, com um país, dois sistemas e um Stanley Ho?

Como se pode levar a sério a política de um país onde um conhecido marialva - memória de ti haja, José Cardoso Pires! - chega a primeiro-ministro sem saber ler nem escrever, por herança directa de um tio que emigrou para a Flandres, a conhecer trincheiras da primeira guerra e a visitar polders holandeses. Que se rodeia de mil mulheres como se recordasse as histórias das mil e uma noites, sabendo-se que mais lhe sobrará a fama que o arcaboiço para tão árdua tarefa? E reduz a premência do problema nacional a saber-se quem pensa o quê sobre o acasalamento de galos com galos e de galinhas com galinhas. Como se isso pudesse contribuir para a redução do défice e para o crescimento da receita fiscal!

Como se pode levar a sério a política feita por engenheiros, como se calculassem a quadratura do círculo e a curvatura do juro, deixando aos tabeliões o estudo do direito romano e o projecto de pontes e auto-estradas com desníveis para a passagem do TGV a 300 quilómetros por hora a caminho do Fogueteiro. Quando reputados lentes de direito, ainda longe do jubileu e da idade da reforma, com capacidade plena para produzir e cobrar pareceres a que ninguém liga, declaram como desiderato nacional a decisão de ter um rumo e de voltar a acreditar, sem se saber em quê e muito menos porquê?

Como se pode levar a sério a política que persiste na reedificação do muro, insiste em chamar Estalinegrado a S. Petersburgo e continua a acreditar que o único evangelho foi escrito por Karl Marx alguns dois mil anos antes de Cristo. Para mais quando tem dúvidas de que a Coreia não seja uma democracia e de que a Madeira não seja um principado cujo chefe passa os fins de semana em Santana, excepto quando tem a agenda repleta de inaugurações. Nunca ninguém fez tudo certo, ninguém fez tudo errado. Toda a gente sempre aprendeu com os erros, é preciso aceitá-los, ajustar trajectórias. A infalibilidade, segundo dizem, pertence ao Papa e ele próprio se tem penitenciado por erros que anteriores sucessores de Pedro cometeram.

Como se pode levar a sério a política que não usando gravata veste desportivamente La Coste, se confessa completamente ateia e corre à Cova da Iria a acender velas de dois metros a Nossa Senhora de Fátima. Acreditar-se que para ter ideias sobre a vida é preciso ser-se correligionário daquele beirão chamado Morgado que defendia que o acto sexual era para fazer filhos e que, por junto, tinha feito um? E piscar-se o olho mais aos gabinetes da Rua do Arsenal do que às desconfortáveis cadeiras de S. Bento?

Nunca é tarde

O Tugir completou, no dia 28, o seu primeiro aniversário. Não vou ser eu, desgarrado neste universo virtual, que lhe vou enumerar todas as qualidades e qualificar todos os atributos dos seus autores. Chega-me dizer que é uma das minhas visitas diárias. E que bem espero que continue a sê-lo. Parabéns. Porque nunca é tarde para os dar!

29 de janeiro de 2005

Culturporto

Está enganado Jorge Marmelo: o Entroncamento não está em risco! Por muito que isso me custe, pelas minhas raízes escalabitanas, o Entroncamento não passa hoje de uma estação arqueológica onde se cruzam comboios, se requalificam algumas carruagens e, de Verão, se parte para o Paul do Boquilobo a debicar achigãs com salada de tomate. Os nabos já não alcançam o tamanho de antigamente, não chegam às bancas do mercado de Tomar, muito menos sonham com o mercado de Santana, já requalificado para a venda da ginjinha a acompanhar as especialidades gastronómicas da Mac Donalds. Mesmo a afamada sopa de nabos, como certamente já terá sabido por um qualquer desenxabido despacho da Reuters, é hoje produzida em Gondomar, com menores custos, mais sabor e levando tora como o caldo verde à maneira. Não me explico mais e não lhe digo porquê porque de facto o não sei. Mas o major, agora que se confessa cansado de distribuir televisores e receber apitos, de oferecer galinhas e não lhe darem a provar da canja, num momento mais desocupado certamente lho explicará. Desde que você se empenhe nisso e não lhe publique a fotografia, nem mesmo no caderno local, que ele está cansado de ser figura pública: todos lhe pedem para a sopa!

Pronto! António Sousa Lemos é vereador da Cultura da Câmara do Porto e é militante do partido que já apresentou governo antes das eleições. Mas lá porque o Dr. Louçã acha que o respectivo presidente não tem autoridade para falar sobre o aborto - IVG para a classe política e para os cientificamente alinhados! - não se podem reduzir as competências ao homem e retirar-lhe a faculdade de nomear, com base na análise do currículo dos candidatos, a directora da Culturporto. Era o que faltava! Com a maluqueira da redução de custos, porque todo o dinheiro é pouco para pagar os calotes do Euro 2004 e para indemnizar a Imoloc, não tardava nada e o Dr. Rio mandava retirar-lhe o antiquado Audi de 1998, que até envergonharia os vereadores de Celorico de Basto, aquele concelho que quase não tem poder de compra.

Depois a engenheira alimentar Raquel Castello Branco não tem culpa nenhuma se ser irmã do Dr. Álvaro Castello Branco e deste ser, por ironia do voto e desdita do destino, presidente da Assembleia Municipal do Porto, eleito pelo mesmo partido do vereador. Simples casualidade, porque ninguém combinou nada, aconteceu, não vão para aí estar a pensar em apitos dourados. Podia de facto a senhora chamar-se Rachel, se fosse brasileira. Podia ser irmã do visconde da quinta. Mas não é. É engenheira alimentar, especializou-se na cultura da beterraba na horta da freguesia do Bonfim, está apta. É maledicência insinuar que engenharia alimentar não tem a ver com cultura e que a bota não diz com a perdigota. Simples despeito, que neste caso concreto o vereador até solicitou referências ao presidente da distrital do seu partido. Que, nada tendo sido combinado e por mera casualidade, é o presidente da assembleia municipal que é irmão da nova directora da Culturporto. E que culpa tem ela? Ela não pediu para nascer, não escolheu os irmãos, não quis ser engenheira alimentar, nunca se imaginou a colher molhos de grelos no sítio de Mija Velhas. Mas aconteceu, foi o destino. Bem! E a competência, o interesse concelhio, a dedicação do vereador António Sousa Lemos.

Por mim tenho pena dos habitantes da freguesia do Bonfim, ao sítio de Mija Velhas. Sem culpa nenhuma vêem-se privados, de um momento para o outro, de quem lhes orientava a cultura da horta. A freguesia vai ressentir-se. Sobretudo a campanha de alfabetização de adultos!

P.S . (que aqui figura por "post scriptum") - Lamentavelmente e por evidente centralismo mouro, o jornal não tem em linha a crónica de Jorge Marmelo. A marmelada já este a anunciara, não precisava de nenhuma ajuda do comentador da RTP e, a tempo parcial, director desta publicação sulista, elitista e liberal!

28 de janeiro de 2005

Galhardetes

Em artigo que ainda não li, o professor Freitas do Amaral parece ter anunciado que ia votar PS nas legislativas do próximo dia 20. Creio que assim a modos de, quando confrontados com dois males, manda o bom senso que se escolha o menor deles, não vá a gente aleijar-se mais do que o necessário. E quanto a isso, estamos conversados, já que se não podem exigir outros candidatos, outros programas ou mesmo outras eleições.

Os galhardetes não se fizeram esperar. Primeiro da boca de José Sócrates, um género de homem tipo Barbbie, em que tudo parece de plástico, vazio e distante como nesses robots de brincadeira com que a canalha com maior poder de compra entretém os seus momentos. Deve ser defeito meu, mas as palavras, para além do sentido, devem também levar alguma coisa de sentimento. As dele têm o sentido oficial do que o partido entende como correcto e a emoção forte da indiferença com que nos atendem nas urgências dos hospitais e nos receitam aspirina para os males da próstata. Não me inspiram nenhuma confiança, não têm vida para além das cordas vocais que as produzem. Mas adiante! Sócrates, como eu dizia antes, veio logo agradecer o apoio, salientar a coerência e a independência do professor, invocar a devoção que manifestava em relação aos interesses do país, à retoma e ao controlo das contas públicas. Da mesma maneira que, ainda antes de ontem lhe criticava o inverso. Os boatos ou as notícias - que a diferença é cada vez mais difícil de estabelecer! - logo divulgaram o almoço numa chafarica da Rua das Pretas, o tinto do Redondo, o café Delta. E adiantaram a possibilidade do professor ser ministeriável, como o é o Dr. Mário Soares e a sua excelsa esposa. Ou até mesmo a candidatura a Belém, para suceder ao Dr. Sampaio, caso o engenheiro Guterres ande a pregar o socialismo e a cantar a internacional, não aceite as mordomias do cargo e não suporte o teor de cloro da água do jacuzzi que vão instalar para massajar os pés e aquecer o dito.

Vão em sentido inverso as pronúncias de um Dr. Relvas, a quem a chatice do cargo no governo e o esforço patriótico parece não terem feito emagrecer, que salienta o passado do professor como um dos pais da democracia, condição ainda não invocada pelo Dr. de Gaia e Menezes - o investigador oficial das paternidades! -, mais por questão de agenda do que esquecimento. Ao mesmo tempo recorda que isso era no tempo em que ele não escrevia biografias de Afonso Henriques nem se entregava à escrita de dramas para os palcos da capital e parecia regular bem de tudo, incluindo da cabeça que, muito o entristece, está apanhada de todo por um esquisito vírus de efeitos mais devastadores do que se fosse simples Alzheimer. Na altura, para além de alguns ganchos, limitava-se a ser lente e a morar na Quinta da Marinha, vendo televisão aos serões, de pantufas calçadas.

Com o mesmo ar tristemente consternado se pronunciou também o primeiro-ministro do governo versão sem açúcar e quase sem calorias do CDS/PP, ainda estupefacto e de olhos esbugalhados, não querendo acreditar que aquele fosse o mesmo professor que ele pessoalmente conhecera quando se iniciara como paquete e rapaz de recados. Porque não sei quando pedira a sorte grande pelo Natal que não saíra e agora pedia a taluda do carnaval que, mesmo em euros, com o pacto de estabilidade a fazer de puta, também não vai conseguir que saia. Sugere que, em coerência, lhe apoie o irmão da próxima vez, invista nisso todo o aforro que tiver, porque o rapaz tem filhos a criar, pode falar da vida com outra propriedade. Ele não, só sabe pôr tudo a dar lucros de fazer inveja aos banqueiros e espíritos santos do país, de comprar helicópteros com as pás empenadas e submarinos que já trazem marinheiros no convés. Aos fins de semana entrega-se à jardinagem nos canteiros da fortificação para não dizerem que só se interessa por feiras e mercados e que nada sabe sobre a beldroega.

27 de janeiro de 2005

Deus me livre

Esta noite a televisão dita de serviço público abriu o seu telejornal com os resultados de uma sondagem promovida pela Universidade Católica que dava ao PS, nas próximas eleições, a maioria absoluta. As sondagens não são mais do que o nome indica: sondagens. Não se compreende que o assunto seja abertura de telejornal, embora não surpreenda. Por mim ainda não compreendi como é que os Estados Unidos libertaram o Iraque e, no entanto, nada já me surpreende que o continuem a afirmar.

Mas extraem-se ilações que são sempre manipuladas. Especialmente neste caso em que um grande número de inquiridos não respondeu. O que, forçosamente, não significa que ainda se mantenham indecisos. Mas, a mim, o que me causa fernicoques, o que me faz urticária, são as maiorias absolutas. Assustam-me, apavoram-me, metem-me medo. Especialmente quando os políticos as pedem invocando as necessidades de estabilidade para o país e a conveniência do poder absoluto para eles. Quanto a maiorias absolutas, honestamente, chegaram-me as que ainda conheci do Dr. Salazar. Aquelas que mandaram de bandeja ao Dr. Cavaco já foram extemporâneas. E a última, a que caiu à custa de uma posta de cherne e de um fartote de submarinos, já se esqueceram dela? Só se lembram que o Benfica não é campeão há oito anos, mesmo que o Altino possa estar feliz pela vitória de ontem? O resto esquece-vos?

Nenhum país precisa de maiorias absolutas para progredir, para se modernizar, para ser solidário. Mas precisa de gente honesta, competente, com um projecto colectivo que se sobreponha aos mesquinhos interesses pessoais ou de classe. O que, em Portugal, só o Sr. Luís Delgado vê no inenarrável Dr. Santana e mais ninguém encontra seja onde fôr ou em quem fôr. Façam-me tudo! Congelem-me o ordenado, aumentem-se o IRS, vistam-me a tanga, façam o discurso da produtividade mesmo que possa parecer plágio dos empresários, resguardados do frio nas arcadas do Estado, ameacem-me com agulhas rombas de seringas infectadas. Mas não me tragam nenhuma maioria absoluta. Substituam-na por homens que defendam um projecto para o país e não um armazém de sifões para retretes. Homens que ainda acreditem na história e que nela queiram vir a figurar por actos e não por montes no Alentejo ou por andares de luxo no bairro da Lapa. E se isso ajudar digam em quem devo votar para que não haja maioria absoluta nenhuma. Nem agora, nem nunca! A ver se asseguro aos meus filhos um futurozito menos mau. Porque o que se lhes perfila no horizonte é uma merda, mesmo sem maiorias!

26 de janeiro de 2005

Transparência

De acordo com o número 2 do Artigo 10º da Constituição da República:

Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política.

É suposto que o seu contributo, monopolista e pago - porque cada voto, por vontade dos eleitos, vale cerca de 500 escudos! - , será assegurado de forma cívica e patriótica, sem nada a esconder, como organizações de bem de que os portugueses, militantes ou não, se possam orgulhar.

É por isso que o CDS/PP nos apresenta este endereço, encerrado para obras, sem nenhuma indicação do período de tempo que as mesmas durarão? É ainda por isso que o mesmo partido, que cola a competência pelas paredes do país sobrepondo-lhe a fotografia do querido líder, dispõe de outro endereço? É por isso que neste endereço o partido não disponibiliza estatutos, contas anuais ou moradas de sedes e delegações? É por isso que se não referem os candidatos a deputados nas próximas eleições, se não relevam iniciativas ou actividades do grupo parlamentar dissolvido, se não dá história de resultados eleitorais anteriores. De que ao menos constem as sucessivas vitórias do senador Avelino Ferreira Torres, nas eleições autárquicas e no estádio do Marco de Canavezes, por impulso regionalista também baptizado de Avelino Ferreira Torres.

É por isso ainda que se não menciona o governo já anunciado, nem a respectiva composição? E será que o partido apenas se dispõe a formar governo desde que obtenha os mesmos 5,5% (resultado do número de votos obtidos pelo CDS a dividir pelo número de eleitores inscritos, multiplicado por cem) do eleitorado como no acto eleitoral de 2002? São folhetos com todos estes elementos que o querido líder vai distribuir, conjuntamente com beijos e lambuzadelas, por feiras, mercados e docas, incluindo a de Matosinhos? Conjuntamente com uma fatia de broa com uma sardinha acabada de assar em cima?

A este tipo de democracia, constitucionalmente consagrada, deve chamar-se musculada, virtual, negligente, mentirosa ou trapaceira? Suportada pelo método de Hondt e pela limitação do número de mandatos unanimemente defendida por tudo o que é força política? E onde a política, afinal, não tem força nenhuma? Excluindo os casos legítimos em que os eleitos se proclamem vitalícios, mesmo contra a vontade de todas as organizações. Porque a vontade do eleitor se esgota no acto solene de enfiar um boletim, dobrado em quatro, num tosco caixote de madeira ordinária! Porque o voto foi com pre-pagamento como os telemóveis? Depois de ter sido comida a fatia de broa e a sardinha acabadinha de assar?

25 de janeiro de 2005

Senilidade

Deus nos perdoe que vamos todos a caminho do mesmo. Simplesmente o Dr. Sampaio vai muito melhor do que a grandessíssima maioria no que respeita ao valor da pensão e às mordomias a que terá direito. Mas as suas atitudes e os seus actos têm sido, nos últimos tempos, sintomas de senilidade galopante. Por um lado o governo Santana, que apadrinhou ainda se não sabe porquê, e que levou ao chinfrim cujo som metálico ainda ecoa por muitos surdos ouvidos. Depois a demissão do mesmo governo em resultado da dissolução do parlamento. Que o obrigou a ano sabático para meditar antes de subscrever a certidão de óbito e levou Santana a reclamar, mesmo depois de morto, por não lhe ter sido cristãmente ministrada a extrema-unção. Ainda na mesma linha a sua recomendação para que sejam criadas condições que gerem maiorias estáveis. Sendo que, fisicamente, por maioria estável se deve entender aquela em que a vertical do centro de gravidade cai dentro da base de sustentação. Sabendo-se que quanto mais baixo se situar esse centro de gravidade maior será a estabilidade. Quem eventualmente disso possa duvidar pode consultar os muitos trabalhos disponíveis na rede sobre o assunto ou telefonar ao presidente da Comissão Europeia para esclarecimentos. Saliente-se, apenas como respeitoso exemplo, que António Vitorino é o protótipo da estabilidade, pelas rodas baixas e peso em excesso.

Agora é a poesia, talvez inspirado no vate nacional, Eugénio de Andrade, cujo precário estado de saúde se lamenta. Para início de estrofe não está mal, embora lhe falte a musicalidade das letras do Carlos Tê:

O país consome demasiado tempo e energias em discussões e conflitualidades cujo destino comum é inevitavelmente o desaparecimento como espuma, mediática mas inconsequente.

Não se podia deixar que o Dr. Sampaio dissesse as coisas dele em inglês? Com autorização da Assembleia da República, como se isso fosse uma ida ao estrangeiro, claro está. E que depois uma loirita qualquer, que já tivesse ido duas vezes aos saldos do Harrods, nos fizesse a tradução. Para a gente não pensar que ele anda a escrever letras para o festival da canção!

O fórum

Com curto dispêndio em investigação e desenvolvimento o país é, de longe e mesmo assim, o que mais inventa. Então em período pré-eleitoral a azáfama é grande, o atropelo é constante, o despropósito é coisa que sai das mais sábias cabeças. De um momento para o outro o país descobre que os partidos que o governarão - salvo seja! - lhe reduzem o programa à realização ou não de debates nas televisões. Onde os candidatos, no conforto do estúdio, possam descansar da sua corrida diária por feiras e mercados, a treparem para furgonetas onde, de microfone a pilhas ao pescoço, propõem o negócio do século: a aquisição de cobertores para o frio, levando como brinde um guarda-chuva para a seca. Tudo só por uma nota de cinco euros!

Agora reparem bem no fórum surrealista que a criativa TSF nos propõe para a próxima quinta-feira: "como ultrapassar a desconfiança no sistema político-partidário". Não é nada que se relaciona com o descrédito do sistema, com o oportunismo dos seus participantes, com a inutilidade pública do seu contributo. Mais imaginosa ainda é a selecção dos convidados, com um elenco de luxo. Morais Sarmento, António José Seguro, António Filipe, Telmo Correia e Ana Drago. Assim um género de fórum em que se comete a Ali Babá e à sua quadrilha de 40 ladrões a discussão sobre a forma de ultrapassar o receio e a desconfiança dos assaltados.

Acha o médio eleitor portuense que os políticos são todos oportunistas e inúteis? Que melhor solução se lhe poderá propor que não a proveniente da boca do Dr. Sarmento em pessoa, conhecedor profundo dos hábitos da tartaruga gigante e dos bancos de coral dos mares tropicais? Desconsola-se o eleitor beirão por lhe mandarem candidatos do sudoeste alentejano sem que sequer saibam que o rio Mondego nasce na serra da Estrela? Quem mais indicado para lhe servir discursos a título de Prozac do que o Sr. António José Seguro? Acha o pequeno agricultor minhoto que é inútil continuar a cultivar duas couves porque não dispõe de meios para as escoar no mercado global? Ninguém melhor do que o Sr. António Filipe para lhe anunciar auto-estradas sem portagem e transporte gratuito até ao mercado da Ribeira, com direito a lugar sem pagamento de taxas. Estranha o produtor barrosão que não haja mais visitantes para as feiras do fumeiro e para as carnes fumadas do cozido à portuguesa? Remeta-se-lhe sem perda de tempo e na volta do correio o Sr. Telmo Correia que muito sabe sobre a capacidade hoteleira do sotavento algarvio e as respectivas taxas de ocupação. Queixa-se o idoso nacional da falta de apoio, da insuficiência da pensão, da extensão da lista de espera para a consulta por causa das varizes? Não se hesite e ponha-se em caravana, a circular pelo país, uma caminheta em que se distribuam folhetos sobre a sida e pequeninos copos de bagaço, a cortar o frio e o jejum. Sob a coordenação de Ana Drago!

24 de janeiro de 2005

Os debates

E é esta gente que nos governa! E é esta gente que se propõe continuar a governar-nos! Tem sido edificante a imbecil troca de pseudo argumentos entre Jorge Coelho e Miguel Relvas sobre os debates a realizar entre candidatos a deputados antes das eleições de 20 de Fevereiro. Como miúdos embirrentos, de cabeça oca e mão apontada ao bolso onde a vítima transporta a carteira, invocam em vão o esclarecimento dos portugueses. Esquecendo-se que, quanto às ideias e às propostas objectivas de cada um os portugueses estão mais que esclarecidos. Os portugueses, por má sina, podem esperar mais de um governo a que presida o burro, o "marchand" ou até mesmo a D. Júlia!

23 de janeiro de 2005

Na mouche - 2





Vasco Pulido Valente. Na edição de ontem do jornal Público. Sem espinhas. Arrasador e perfeitamente lúcido. Esta dita democracia representativa já não representa nada nem ninguém. Entre vencedores e vencidos vai apenas a diferença de aprisionar generais ou de mandar fuzilar sargentos. A menos que os sargentos se levantem em rebelião, exigindo melhor pré, menos IRS e mais rápida progressão nas carreiras.

22 de janeiro de 2005

Na mouche - 1





Vasco Pulido Valente. Na edição de ontem do jornal Público. Sem espinhas. Arrasador e perfeitamente lúcido. Esta dita democracia representativa já não representa nada nem ninguém. Entre esquerdas e direitas vai a distância de um simples aperto de mão. Vai a diferença na fragrância sofisticada de um perfume da moda importado de Paris.

PSD – O choque de gestão

O PSD foi ontem o primeiro partido a apresentar aquilo a que chama o seu programa de governo no caso de, como espera, sair vencedor das eleições de 20 de Fevereiro próximo. A redacção de um tal documento foi coordenada pelo ainda ministro António Mexia que, para o efeito, se socorreu do "out sourcing", expressão germânica adoptada há anos pelo mirandês e de há muito corrente na indústria do petróleo. Onde, como se sabe, as ramas que aportam a Sines, no bojo dos petroleiros, não são provenientes da ilha do Pessegueiro mas do mar de S. Tomé e Princípe, graças ao empenho do também ainda ministro Sarmento.

O mesmo António Mexia fez a introdução desta nova versão do D. Quixote - que até está de comemorações - e não me ficou, honestamente, nota de nada que tivesse dito. Se é que disse! Depois a apresentação ficou a cargo do próprio Santana Lopes que gastou na tarefa uma longa hora de discurso denso e profundo que desafiou o poder de síntese do lendário Fidel Castro. É difícil escolher propósitos, seleccionar medidas, criticar seja o que for. Pelo menos enquanto o professor Marcelo se mantiver fora da ribalta e o Dr. Marques Mendes se conservar em bicos de pés à espera da implosão e dos destroços.

Mas um conceito novo e inovador desde logo me fascina e só não votarei no Dr Santana Lopes porque, infelizmente, ele não consta da lista da invicta cidade. E tal é, como muito objectivamente o define, o choque de gestão. O fundamental, para Portugal, é assumir a necessidade de um choque de gestão. E em que consiste este redentor choque de gestão? Trabalhar mais, produzir mais, criar mais riqueza. Manter em permanente observação o controlo da despesa - tarefa que será assumida pelo próprio Santana Lopes, um forreta e um semítico, provavelmente de ascendência judaica -, combater a evasão fiscal e exigir uma nova mobilidade laboral. Uma medida, especialmente, me leva quase a transferir-me para a freguesia de S. Sebastião da Pedreira, se ainda for a tempo de dar o meu único voto - porque parece que não é permitido votar em duplicado, o que é uma estupidez! - a tão honrado pretendente. Propõe ele que todos os contratos-programa celebrados com o Estado levem ao despedimento com justa causa caso os objectivos não sejam atingidos. É que, mesmo que com ligeiros atrasos, há objectivos que às vezes não são cumpridos, o que pode remeter o Dr Santana Lopes para o fundo de desemprego logo no fim do seu primeiro ano de governo. Não é, felizmente, o caso da Casa da Música onde há-de vir cortar a fita, sentar-se ao lado do professor Marcelo e aplaudir a erudição do Sr. Quim Barreiros e do seu clássico Maria quero cheirar teu bacalhau.

Anuncia ainda a criação de um gabinete mais pequeno do que o anterior, como já aconteceu aliás com o governo que demitidamente se vai arrastando, por falta de verbas e de candidatos: ninguém está disposto a ter ordenados em atraso e os depósitos dos carros de serviço vazios. E a criação fundamental de um cargo de vice-primeiro-ministro, com poderes transversais e ocultos. Um vice-primeiro-ministro que durma atravessado na cama e que nos debates parlamentares possa apoiar a cabeça no colo do Dr. Santana e os pés no regaço da ministra da educação. Enquanto vai programando a utilização das poções mágicas preparadas pela maga patológica. Também conhecida por Maya, porque é estrangeira da Reboleira e o nome utiliza aquela letra que não aprendemos na escola: E que nunca fez falta nenhuma para escrever porra!

21 de janeiro de 2005

Bananas

Parece que o demitido e demissionário ministro Arnault se vai esforçando por preservar a dignidade que é devida ao cargo até ao último momento. E parece ainda que neste propósito terá feito a sua peixeirada no Conselho de Ministros por ter sido ignorado quanto às novas travessias do Tejo, afirmando peremptoriamente não ser banana, apesar do seu aspecto longilíneo e ligeiramente curvo. Posição que apenas confirma o que já de há muito se vinha pensando, apesar do aspecto: o homem, de facto, é mais para o nabo!

20 de janeiro de 2005

Assim não dá!

Como é que um país onde se diz que um ministro do ambiente de um governo em funções de gestão nomeou o seu chefe de gabinete, Filipe Batista, para inspector-geral dois dias antes das eleições, pode ir para a frente? Como é que um país onde se diz que houve confusão de nomes e que afinal Filipe Batista foi nomeado pelo ministro seguinte que pertencia a outro clube de pesca pode de facto ir para a frente? Como é que um país onde se mantém Filipe Batista no cargo durante vários e diferentes desgovernos, incluindo aquele em que a sede do ministério se transfere para a Serra da Arrábida, pode ir para a frente? Como é que um tal país pode ir para a frente, crescer economicamente ao ritmo da cartilha do ministro sombra, conter a dívida pública a uma dimensão inferior à distância que nos separa da lua das coisas simples, controlar a inflação ao nível a que se situaram os aumentos da função pública decretados pela irmã do fanático do Sporting e cumprir com os limites do pacto de estabilidade e crescimento? Um país que tem um Filipe Batista? Não, assim não dá! Mande-se o homem à conservatória do registo civil. Ao menos que altere o apelido, porra! O problema do país, nitidamente, é ter um Filipe Batista!

19 de janeiro de 2005

TGVUUUM…

Quem invoca Júlio César e as suas observações sobre este estranho povo que nem se sabe governar nem deixa que o governem, na intenção de ridicularizar o país, fá-lo por despeito. Não tem razão quem acha que o país sobrevive à deriva, sem capacidade de se organizar, aproveitando o acaso de ventos e marés. Padece de iliteracia crónica quem pensa que o país é incapaz de elaborar projectos que sejam realizáveis com o rigor de pi arredondado ao primeiro milhar de decimais. É daltónico e está equivocado quem pensa que o país fomenta a rebaldaria em detrimento da sensatez e da exactidão. E, em conjunto, nem conhecem nem ouviram falar do ministro Mexia.

O país passou anos a deixar que este homem andasse pelo médio oriente a comprar petróleo em barris a troco de uns curtos milhares de contos de ordenado mensal que lhe pagava a empresa das refinarias. Só a visão futurista de Santana foi capaz de ver para além do quintal do vizinho e de descobrir a evidente analogia entre a gasolina de 98 octanas e as portagens nas SCUTS. E de, mais do que isso, descobrir a proximidade entre o legado de Eiffel e as necessidades do TGV. Hoje, orgulhoso, o país exulta com a entrada em funcionamento daquele meio de transporte em 2012 e com o acessível custo dos bilhetes. Velhinhas corcovadas e apoiadas a bengalas inscrevem-se para a consulta médica, a solicitarem a pílula milagrosa que lhes prolongue a vida para além de todas as inaugurações. Os poucos trabalhadores rurais que ainda se agarram à enxada, no propósito de enganarem a fome e a pobreza, impacientam-se com tão longa espera para poderem ir tomar a bica aos cafés do Rossio e assistir às representações no teatro nacional. O ministro, previdente, rigoroso e oportuno, anuncia para a véspera de eleições a cerimónia da apresentação da farda dos revisores e das modalidades dos passes sociais para o percurso de S. Bento à Moncloa.

Que o país, mesmo tardiamente e a desoras, saiba ser reconhecido e não hipoteque tão científico rigor a troco de um voto, seja lá a cruz marcada em que emblema for, desde que a esferográfica ainda risque. Saiba levar à gestão de tal projecto um outro homem de parecidos merecimentos e equiparadas habilitações. Um homem que seja polivalente - uma híbrida combinação de valentia e poliban -, capaz de reformar a educação, de inspirar o empresariado e de reconhecer cada nota das sonatas de Schubert mesmo quando os elevadores da Casa da Música o transportam ao piso superior onde lhe localizaram o modesto gabinete. Que o país seja capaz de convencer Couto dos Santos a aceitar o cargo mesmo a tempo parcial e bem remunerado. Para que leve o projecto a bom termo e leve o barco a bom porto como, com a inspiração da Senhora de Fátima, conseguiu com a Casa da Música. Que nesta altura, depois da sua nomeação, não apresenta desvios de calendário ou derrapagens financeiras. Quando antes era o que se sabe! Agora não! A Casa da Música ficará concluída em 2001, rigorosamente dentro dos limites do orçamento inicial, convertido para euros. A data de inauguração? Em Abril do ano de 2001 mais n!

Aniversário

Eugénio de Andrade completa hoje 82 anos de idade. Não precisa de homenagens nem de reconhecimentos. Por isso a intenção é apenas registar a efeméride. O resto sabe-se, a obra conhece-se.

As Mãos e os Frutos

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

18 de janeiro de 2005

A vergonha

Um sexto da população mundial (mais de mil milhões de pessoas) vive na pobreza extrema, definida no relatório como "a pobreza que mata". Estas pessoas carecem de água, de alimentação adequada e de cuidados de saúde básicos.

Em Portugal um demitido e demissionário ministro de um governo virtual, incumbido da gestão corrente dos assuntos públicos até à realização de eleições a 20 de Fevereiro, anuncia como corriqueiro acto de rotina a construção de uma nova travessia sobre o rio Tejo com bilhetes para o TGV a preços da uva mijona e passes sociais para ir apanhar sol nas praias da costa. Mais: é capaz de o fazer sem nenhuma intenção de propaganda política, por simples patriotismo que alia à rotina. É, simplesmente, uma coisa de todos os dias que, na maior parte dos casos, até são decididas pelos contínuos do ministério.

Amanhã o competente e azougado treinador da Académica de Coimbra - para cima Briosa! - anunciará a vitória na superliga, a participação na liga dos campeões em cuja final derrotará uns turcos de esquisito nome e a vitória maior na taça intercontinental, disputada no Japão, contra um Penarol qualquer de uma segunda divisão sul-americana. Reduzirá a esterco o treinador do Chelsea e o seu ordenado milionário e fará o favor de se proclamar como a maior cabeça do mundo e ainda rei de Portugal e dos Algarves.

17 de janeiro de 2005

Eleições – 1

Os políticos, como os impolutos dirigentes desportivos, vociferam constantemente contra o sistema que lhes asfixia os cargos e as pretensões. Nada de mais razoável, nada de mais inteligente, nada de mais vantajoso para o progresso da sociedade e a independência do país. Especialmente depois dos versículos do evangelho segundo o Dr. Soares Pai terem democraticamente reservado a todos o direito, composto e não violento, à indignação. Do desporto e das suas virtudes não é o momento para se falar, mesmo que se possam recordar as inflexíveis posições assumidas pelo governo, quanto à exigência para que os clubes profissionais de futebol paguem as dívidas que têm, como qualquer vulgar Manuel ou António. Se questionem os desmedidos contributos para a construção de estádios que ou estão parcialmente vazios ou se não sabe para que servem. Se possa enaltecer a atitude que, anos atrás, penhorou no Estádio das Antas o lavatório e a sanita da cabine da equipa de arbitragem, obrigando a que os seus elementos fossem para o duche a um balneário público que, ainda por cima, não tinha aquecimento de águas.

Com eleições marcadas para 20 de Fevereiro é sensato que toda a gente, prioritariamente, se preocupe com a proximidade do acto e que os clubes de futebol, por desconcentração, acabem a ceder pontos importantes em desafios que disputem em Coimbra ou na Madeira. É compreensível que o sistema político seja de novo posto em causa e as suas desvirtualidades ditas e reditas. Mas não é a altura para promover nenhuma revisão e decidir que os golos marcados fora de casa valem a dobrar como na liga dos campeões. Excepção naturalmente feita aos Drs. António Barreto e Vasco Pulido Valente que, descontentes com os resultados do campeonato, suspenderam o pagamento de quotas e, em público, rasgaram os cartões de sócios e exigem o despedimento do treinador e de metade do plantel, sem nenhuma indemnização.

Os partidos políticos afadigaram-se na preparação de listas, que já apresentaram. Convidaram, desconvidaram, transferiram a custo zero aproveitando a caducidade de alguns contratos. Os treinadores entenderam que o deputado A pode render mais como central, em Coimbra, do que como médio direito em Faro. Que o parlamentar B poderá ser um eficaz ponta-de-lança em Bragança quando não passou de um desajeitado defesa direito em Portalegre. Que o apagado orador C, por Beja, com o seu arrastado sotaque alentejano, poderá dar um eficiente levanta e senta pelo Porto. Algumas compreensíveis altercações foi havendo, como sempre, na elaboração das listas. Portugal é um país de voluntariosos candidatos a lugares e mordomias. A competência e o patriotismo são medidos pelo ordenado que se arrecada, pelas viagens que se fazem e pelos automóveis que se usam. Os cartões de crédito até já trazem estampada a bandeira nacional ao lado do período de validade que, naturalmente, ninguém tem o desaforo de contestar.

Desenhadas e apresentadas as listas os dirigentes partidários atarefam-se naquilo a que nos habituaram. Afirmando a sua competência e reafirmando a incompetência do adversário. Afirmando-se ateus, solicitando audiências aos bispos e rezando terços em honra de Nossa Senhora. Prometendo a subida de divisão ao Carcavelinhos e a superliga ao Salgueiros, nem que seja a troco de uns terrenos com os quais, que se saiba, o Dr. Vale e Azevedo não teve nada a ver. Recusam-se desafios para debates sob a alegação de que um candidato a primeiro-ministro se não confronta com um reles pretendente a um assento em S. Bento. Sendo certo que o cargo de primeiro-ministro existe, as eleições para ele é que são feitas num clube de bairro, numa sexta-feira à noite, enquanto se palitam os dentes, se saboreia a bica e se fuma o cigarro que o decreto ainda não proibiu. Além disso os partidos políticos, como organizações que nós, pobres contribuintes, sustentamos, arrogam-se posições de idoneidade, aspiram a formar governo mesmo quando apenas têm dois deputados. E nesse contexto anunciam medidas, solicitam contributos a quantos sábios o país ainda mantém vivos e indigitam personalidades para redigirem promissores programas de governo. Sem erros de ortografia mas transbordando de vícios de gramática.

Assim sendo, nada mais natural do que fazer a viagem de circum-navegação, aportando aos sítios que cada partido oferece nesta malha globalizada que é a internet. Para sabermos o elenco que nos oferecem para o filme e vermos se nos agrada o argumento que nos propõem, sob a forma honesta de programa de governo. Para nos esclarecermos e para decidirmos. É a isso que vão dedicar-se os próximos apontamentos. Este é só a introdução do propósito.

16 de janeiro de 2005

Indefinição

Não sou, não fui ou serei comissário político.
[Luís Delgado, in Correio da Manhã]


É esta indefinição, esta eterna dúvida, o lamentável facto de ser sempre o último a saber, que hoje me preocupam. Como se já nos não bastassem os milagres da pre-campanha, o advento da prosperidade para todos, a longevidade dos velhos até aos cem anos e até ao salário mínimo nacional. A deslocalização - não sei o que significa o termo, mas está tanto na moda como esteve o burro que o país admirou mais do que a Júlia Pinheiro - das empresas texteis portuguesas para a China. Que, esperamos, leve à frente o saber de experiência feito dos respectivos empresários. A bem da competitividade, da independência nacional e da abençoada filosofia um país, dois sistemas, um Stanley Ho. Graças a Deus que o Dr. Sampaio, com aqueles seus olhinhos que a terra há-de comer, pôde confirmar no local que Macau progride, cumpre os acordos, produz camisas de manga curta e esfola cobras para o churrasco. Mas a convicção do Luisinho do Jumento vai restaurar a depressão de ser português, a espera vã de ser do Benfica, o drama de amor de Pedro e Inês. O país não aguenta, eu também não.

14 de janeiro de 2005

O manifesto

O demitido e duas vezes demissionário ministro Sarmento - e não segmento que é um termo mecânico para denominar um anel metálico utilizado nos motores de explosão! - é cabeça de lista do PSD, pelo círculo eleitoral de Castelo Branco, às eleições legislativas do próximo dia 20 de Fevereiro. Na anterior legislatura foi eleito por Santarém e, honestamente, não lhe conheço as relações com qualquer um daqueles distritos. O que também, como se sabe, não tem relevância nenhuma a não ser o desconforto e a chatice de andar a correr de freguesia para freguesia no período eleitoral, sentir o automóvel de topo de gama aos saltos pelos pisos de estradas florestais, engolir apressadamente umas febras com gordura e mal grelhadas e cumprimentar, com sebosos apertos de mão, presidentes de juntas, párocos, catequistas, professores primários e carteiros dos correios.

Quanto ao resto basta ter estudado a geografia elementar do país, saber que tem não sei quantos distritos e ter ido a Castelo Branco numa excursão escolar durante a qual se fez uma visita ao que resta do castelo e se defrontou uma equipa de estudantes locais em futebol de cinco. Depois da eleição os eleitos reclamam-se, solenemente, como deputados da nação. Se o seu partido é chamado a constituir governo podem ser chamados aos corredores ministeriais ou às catacumbas dos ajudantes de ministro e ser incumbidos da chatíssima tarefa de tentar governar, a troco da vocação patriótica, um estranho povo de analfabetos que quase todo sabe ler, escrever e contar. Embora não perceba o que lê, escreva com erros ortográficos e precise de somar pelos dedos dois mais três. A não ser assim, o deputado da nação ocupa o seu lugar no hemiciclo de S. Bento, reclama dignidade para o gabinete que lhe atribuem, solicita secretárias e assessores, lamenta-se da miséria do ordenado, queixa-se do atraso com que recebe as ajudas de custo e ressona nos plenários. Cumpre a sua função de serviço público e, por isso, se reforma com ordenado por inteiro depois de dois ou três mandatos. Está é, como a dos futebolistas, uma profissão de desgaste rápido, é preciso dar lugar aos novos talentos e garantir o conforto da reforma aos velhos.

O discurso, de forma genérica, é circular e vazio sendo fácil confundir-se qualquer intervenção do Sr. José Veiga com a de um deputado da nação, sem que este possa, regra geral, invocar a sua condição de emigrante no Luxemburgo e lamentar a qualidade do português ensinado no grão-ducado. E a azáfama, o brio, o pundonor com que os candidatos se entregam à peleja é uma peça interpretada por galinhas tontas que nos diverte e nos faz rir, não fosse o exagerado preço que temos que pagar pelo bilhete. Não é por acaso que o Dr. Guilherme Silva é cabeça de cartaz e que o Sr. Jaime Ramos, que descobriu a oportunidade que resultava de não haver incompatibilidade entre o cargo de deputado e o comércio de acessórios para sanitas, é segunda figura da ópera bufa da Madeira.

Penitencio-me pessoalmente por algumas críticas provavelmente injustas que aqui tenho afixado. Mas também se sabe que quem quiser versões oficiais e verdadeiras deve consultar os portais dos partidos parlamentares, as declarações dos membros do governo, os escritos do Dr. Pacheco Pereira e assinar o Diário das Sessões. E isto, essencialmente, por uma razão. O demitido e demissionário ministro Sarmento apresenta-se a candidato com um currículo que esmaga e com um profissionalismo que espanta. Afinal não foi a S. Tomé e Príncipe para entregar equipamentos obsoletos, nem para a caça submarina, nem para dormir numa estância turística. Foi estagiar para se apresentar em forma no círculo pelo qual se candidata.

E o estágio resultou: na já esperada iniquidade da candidatura e no veloz chorrilho do disparate. Ontem apresentou em Castelo Branco o seu pensado projecto político que se conforma com a condição de bom aluno do engenheiro Sócrates e na abominável intenção deste se profissionalizar como mestre. Ao mesmo tempo que recorrendo os seus conhecimentos de ajudante de cabeleireiro se arroga a condição de esteticista e invoca o adstringente e a cosmética. A divulgação do projecto, equitativo e igualitário, pauta-se pelo ataque pessoal, pelo insulto, pela higiene mental da suinicultura. É isso que mais me diverte: a imbecilidade com que nos julgam atrasados mentais e com toda a desfaçatez nos impingem a banha da cobra, boa para o stress e para os calos. Mas tinham mais nível, outra qualidade e mais competência aqueles que antigamente a vendiam na Praça da Liberdade, em frente da saudosa Imperial. E ainda por cima faziam descontos no preço!

13 de janeiro de 2005

As moscas

O engenheiro Sócrates, o mesmo que defende o socialismo democrático, - ainda que encafuado no fundo da gaveta - que se veste no Rosa e Teixeira e que toma o chá das cinco a uma mesa da Versailles, acompanhando-o com biscoitos de sortido húngaro, escreveu-me. Não sei a que propósito e, mais preocupante, não faço ideia de quem, sem minha autorização, lhe forneceu o endereço. Porque mesmo considerando a carta como lixo não deixo de ver a minha privacidade invadida por estranhos e de ter que perder tempo com isso. À semelhança do que acontece quando uma qualquer menina de voz indefinida e meia idade me liga para o telefone e insiste em dizer-me que sou um privilegiado e que acabei de ser seleccionado para, sem custos e sem esforço, ir passar duas semanas de férias numa estância das Caraíbas.

De qualquer modo, e mesmo que seja prudente não dar confiança a desconhecidos e não lhes responder às cartas, sempre me disponho em devolver-lhe algumas considerações e em gastar o dinheiro de um selo de correio normal.

Senhor engenheiro Sócrates,

Por correio electrónico e com uma fotografia no topo chegou-me à caixa de correio uma carta sua, que me não era devida e cuja intenção não alcanço. Diz-me V. Exa., a título de saudação, que querem contar comigo. Devo informar que se deve tratar de um equívoco porque não pus anúncios em jornais a pedir emprego, não me proponho vender enciclopédias porta a porta e não preenchi apressadamente propostas para inscrição em partidos políticos ou em clubes de futebol.

Mas adiante! Diz V. Exa. que no próximo dia 20 de Fevereiro os portugueses vão ter uma palavra a dizer sobre o seu futuro. Creio, obviamente, que se refere ao seu próprio futuro porque, quanto ao deles, nunca ninguém lhes quis ouvir as palavras e cada vez o querem menos. Acrescenta que este deve ser um ano de viragem e asseguro-lhe que o será como os anteriores e inevitavelmente a 31 de Dezembro. Do mesmo modo que fará a diferença: não haverá Euro 2004, será inaugurada a Casa da Música, o ano de 2004, como certamente ainda recorda, foi bissexto e teve um dia a mais.

Saiba V. Exa. que são mais fieis os adeptos de Portugal do que os do Sporting que aguardaram 18 anos para voltarem a ser campeões, sem nunca perderem a esperança, excepto os que lamentavelmente foram morrendo pelo caminho. E o país, como V. Exa. também sugere, não precisa nem de um novo rumo, nem de um novo treinador. Precisa de uma vassourada rude, capaz de remover a bosta e acabar com a raça às moscas, sejam estas varejeiras ou domésticas. O país não precisa de nenhuma alternativa política, tenha ela como cabeças de cartaz V. Exa., o Dr. Santana, Richard Gere ou Tom Hanks. O país precisa e reclama de há muito, apenas e simplesmente, uma política.

O país, engenheiro Sócrates, não aguarda por projectos cujos contornos lhe são cuidadosamente escamoteados, não anseia por nenhum crescimento económico, considera que são bastantes as rentabilidades da banca e da Brisa, recusa promessas de emprego que já sabe ser promovido à custa de encerramento de empresas, de falências e do decréscimo sistemático do poder de compra de quem depende do ordenado para viver. Tão pouco solicita o apoio de sindicatos que lhe defendam os interesses ou de políticos patriotas que se esfalfem a trabalhar em seu benefício. De há muito concluiu que não existem nem uns, nem outros.

Assevera V. Exa. que não perderá muito tempo a falar do passado e há algumas razões para acreditar nisso: pelo que já tem falado é natural que a 20 de Fevereiro próximo o assunto se lhe tenha esgotado. Mas o país agradeceria que pura e simplesmente não perdesse tempo a falar abusivamente em seu nome. Anseio que, aliás, estende a todo o extenso espectro político, abrangendo os que, velhos e alquebrados, optaram pela reforma como o Dr. Almeida Santos. O país não precisa de pessoas que falem muito e bem, sem saberem o que dizem. O país entende que as suas prioridades não são a protecção da democracia iraquiana, a renovação da televisão santomense, a caça submarina ao tubarão ou até a fotografia turística junto à grande muralha da China. O país precisa de quem tenha o entendimento mínimo do que é serviço público, de quem saiba o que quer e de quem o anuncie sinteticamente em poucas e curtas palavras. E se entregue ao trabalho, prescindindo de boys, assessores e afilhados, com o fito no bem comum, no progresso e na melhoria das condições de vida de quem vive na miséria. E quem vive na miséria, engenheiro Sócrates, é muita gente.

Finalmente, não apele em vão à participação seja de quem for para construir dinâmicas de mudança para uma nova geração e uma clonada raça de moscas geneticamente mais resistentes à compostura e ao decoro. Não peça que seja quem for se aplique no debate e na divulgação das suas propostas, que objectivamente se não conhecem. Percorra o país e conheça-o sem ser a partir de apressados almoços à base de febras de porco e de copos de tinto. Sem que esse conhecimento se restrinja a um qualquer concelho do interior e ao largo onde se ergue o antigo pelourinho. Conheça o país conhecendo as pessoas que o habitam, sabendo das carências dos velhos. Sem rendimentos dignos, sem assistência médica, sem nenhuns apoios na recta final que percorrem na vida. Faça propostas substantivas, como engenheiro elabore cronogramas, estabeleça calendários e quantifique tudo. Com o rigor com que isso deve fazer-se e não anunciar-se. Depois apele à participação e ao castigo pelo incumprimento. Não queira que eu, contribuinte líquido e activo, o sente à mesa redonda do orçamento e lhe ponha o guardanapo a proteger-lhe a alva popelina da camisa para que possa mandar servir o banquete.

Cópia desta carta segue para todos os seus adversários políticos, com ou sem representação parlamentar. Por incrível que isso possa parecer, a carapuça tem a medida exacta de cada uma das cabeças. O que me leva a crer que, de facto, quem vê caras não vê tamanhos de chapéus!

12 de janeiro de 2005

O mergulho

Portugal é um país ignorante e este deve ser um dos poucos atributos sobre o qual não subsistem dúvidas. E como é ignorante, erra com quotidiana frequência. Nos assuntos complexos, como nos mais elementares. Aliás, em boa verdade, nem é capaz de distinguir entre uns e outros.

O país não compreende a razão porque os candidatos a deputados são muitas vezes recrutados entre futebolistas aposentados ou porque motivos o engenheiro Sócrates - o actual, o que veste no Rosa e Teixeira - se dedica ao atletismo e faz a meia maratona competindo com a Rosa Mota. Muito menos compreende a relevância que tem a condição de pugilista para o exercício do cargo de ministro ou até que ponto a aptidão para o mergulho submarino poder constituir assunto de Estado e auxiliar na cooperação. O país desconhece a elegância do discurso do deputado Silva de Águeda apenas porque ele se mantém calado durante toda a legislatura, mas os seus pares louvam-lhe o desprendimento com que, à sua custa e sem recurso ao orçamento do Estado, os presenteia pelo Natal com garrafas de bons vinhos, com rótulos personalizados.

Sendo ignorante, não admira queo país se comporte como ingrato. Experimente o Sr. Castelo Branco, conhecido e competente marchand de arte das praças de Nova Iorque e da Reboleira, oferecer a um miserável sem-abrigo que se acolha durante a noite sob as arcadas do Terreiro do Paço, uma cara peça de alta joalharia, desenhada por uma lady de bom gosto, na mais pura platina. E verá como lhe será reconhecida a intenção e agradecido o gesto. Certamente que o sem-abrigo lhe fará ver que para se alimentar prefere uma sopa e que pechisbeque não rende nada e nem sequer o oferece a ninguém.

Não admira, portanto, que o ignorante cidadão comum, como eu, não seja capaz de aferir ou até de compreender a importância de um sábado de descanso, numa estância turística de luxo - que me perdoe a D. Judite de Sousa - para os complexos e muitas vezes estranhos negócios da cooperação. Assim sendo nunca compreenderá como é necessário fretar um avião para transportar alguns equipamentos obsoletos e, por razões de custódia, incumbir da sua entrega um Ministro de Estado em pessoa.

Como pode um tal povo bárbaro entender o contributo que para a cooperação podem significar os equipamentos obsoletos, o fato de mergulho, as barbatanas, uma garrafa de ar comprimido e uma simples arma de caça submarina?

Diálogo

Ele: Ó querida são quase nove e meia! Chegaste tão tarde hoje! Que te aconteceu?

Ela: Oi 'mor! Olha, à saída foi difícil vencer a resistência das pessoas para aceder ao pantógrafo e a cena repetiu-se no acesso ao elevador, até conseguir penetrar nele. Depois a resistência dos passageiros na plataforma da estação do Metro, as dificuldades em superar aquela meia dúzia de metros, quase não conseguia a penetração. Depois, sabes como é, é um acto heróico superar diariamente o IC19 e a Quinta da Regaleira. Só agora consegui!

Ele: Olha, hás-de dizer-me que livro andas a ler! Ou passaste a comprar a Maria?

Ela: Nada disso, 'mor! Vejo de manhã as informações de trânsito no canal um e estou atenta ao que diz o cromo que as apresenta. Depois actualizo a linguagem, para melhorar o meu português. Não é o máximo?


11 de janeiro de 2005

Vício de fumar

Nunca fiz campanha contra o tabaco e não vou fazê-la agora. Nunca pedi a ninguém, nas proximidades, que apagasse o cigarro porque o fumo me incomodava e não vou fazê-lo agora. Mas sou contra o uso do tabaco e contra a monstruosa hipocrisia que envolve o respectivo negócio. Mais importante do que isso, sou livre e conscientemente solidário com quem se manifesta contra o tabaco e os seus malefícios e apoio com a melhor e a mais forte das minhas forças a simples intenção de abandonar o tabaco e o vício do fumo. Por isso este apontamento é um encorajamento ao detentor do alvará da tasca e uma palmada nas costas, de apoio ao selvagem que gere o serviço da copa e do balcão.

Fumador recorrente e compulsivo, recordo hoje o dia 2 de Março de 1993 como uma data mítica, mais importante do que aquela em que Diogo Cão enterrou um padrão nas costas de África, mais determinante do que a batalha de S. Mamade. Na manhã desse dia já distante de quase 12 anos fumei dois cigarros que, do dia anterior, me tinham sobrado num maço aberto. Até hoje, foram os últimos!
Antes disso fizera uma primeira tentativa de três meses e recaíra, convencido de que dominava a situação. A segunda tentativa teve mais amplo sucesso, durou alguns seis anos, já não permitia recaídas involuntárias.

Com a habitual simpatia a agricultura de subsistência da lavra regista o reencaminhamento directo para este nem sequer baixinho promontório numa secção a que chama África antes: com licença dele, está errado, quanto à África que é antes, durante e depois. É África sempre! Dor que tive, sequela que me ficou, perda que carpi foi apenas o de ter recaído naquele sacana de LM, da Fábrica Velosa, importado das costas do Índico, passados seis anos de abstinência. Curei-me! Da dor, da sequela, do carpido e do LM. De África, felizmente, não.

Deixei de fumar assim. Quase sessenta cigarros no dia 1 de Março de 1993, apenas dois na manhã do dia 2, nenhum no dia 3. Nenhum ontem, nenhum hoje! Sem assistência médica, sem acompanhamento psicológico, sem me entusiasmar com os triunfos do Sporting e sem ceder ao exorbitante preço que me cobravam os dentistas para as primeiras próteses fixas. Nessa primeira manhã um colega e um amigo, à sorrelfa, escondeu dentro de armários previdentemente fechados a sete chaves todos os cinzeiros que se espalhavam pelos tampos das secretárias. Pedi que tudo fosse reposto como estava porque quem tinha decidido deixar de fumar tinha sido eu e o problema, se o houvesse, era também apenas meu.

Assim se passaram quase 12 anos. O exemplo não é, felizmente, único e a fórmula, não sendo original, é eficaz e, provavelmente, a mais racional. Tudo passa pela vontade e pela determinação do fumador. Não é remirando as inscrições nos maços de cigarros a dizer que o tabaco mata e a omitir o peso dos impostos incluídos no preço que a gente lá vai. A Tabaqueira vai distribuindo dividendos à custa da nossa saúde, o Estado vai reduzindo o défice do orçamento à força de compulsivamente nos amortalhar antes de tempo.

10 de janeiro de 2005

Tsunamis

Confesso que ainda hoje não compreendo como foi possível à minha geração sobreviver sem o serviço público de televisão. Hoje, creio, teria toda ela perecido vítima da mortalidade infantil e da ignorância inadmissível. Não fosse o serviço público e ainda pouco ou nada teríamos ouvido falar da Mukata. A doença de Arafat e a sua evacuação para França conferiu a um monte de escombros onde o mesmo era mantido refém há dois ou três anos uma inesperada dignidade. Por mim, ainda hoje não faço a mínima ideia do que seja isso de Mukata e se calhar os jovens repórteres que relataram um funeral como se fosse o Sporting - Benfica de sábado passado também não. Mas soa bem Mukata, a par com mais dois ou três vocábulos de árabe e mais dois ou três de hebreu.

Judite de Sousa é das mais cultas figuras que se perfila frente às câmaras da televisão de serviço público, de sorriso pepsodent, cabelinho pintado que há coisas que a idade não perdoa. Sempre que a vejo ler o telejornal sinto-me mais incapaz do que um concorrente do quem quer ser milionário eliminado logo na primeira pergunta. Ela fala em tremores de terra, em maremotos, em tsunamis e creio já a ter mesmo ouvido falar em marmotas. Mas tsunami é, pelos dias que correm, o vocábulo que ofusca a fama e a celebridade do rei do quintal, que já não dorme sem o auxílio de barbitúricos. Ainda ontem um homem insuspeito como Nuno Guerreiro, de longe, realça na Rua da Judiaria tão ampla cultura e tão sofisticada dicção, até no uso da expressão "rizorte de luxo" que, como sabem os poucos portugueses que dominam o mirandês, quer dizer "estância de férias". Sendo certo que a maioria do português comum não sabe o que são férias e ignora completamente o que é estância.

Esta noite Fátima Campos Ferreira, outro rosto ladino da nossa televisão pública, promete fazer a reconstituição do terramoto ocorrido em Lisboa, a 1 de Novembro de 1755 e que, afinal, foi seguido por um enorme tsunami que inundou os túneis do metro - estando a prova ainda no Terreiro do Paço -, derrubou o cais das colunas, paralisou as carreiras para o Barreiro e levou a Carris a deslocar a sua frota de eléctricos para o alto do Parque Eduardo VII, antes deste ser dado ao engate e à pouca vergonha. Apenas, ao que parece, não prejudicou as obras em curso no actual Parque das Nações para não atrasar a inauguração da Expo 98, não deixar no desemprego o engenheiro Cardoso e Cunha e não inviabilizar qualquer negocizinho que, em conjunto, pudessem no futuro fazer o Dr. Nabais e o animador Represas.

No ano em que se comemoram 250 anos sobre o acontecimento, mesmo à expedita maneira portuguesa, parece um bocadinho tardia a reconstituição da catástrofe. Não adiantará nada ou adiantará pouco, como as sucessivas comissões parlamentares de inquérito sobre o acidente do Cessna de Sá Carneiro que, alternadamente, vão concluindo por acidente e por sabotagem. Mas é certo que na altura a invasão do tsunami não chegou ao conhecimento do conde de Oeiras, nem do marquês de Pombal, tão pouco do Sr. Sebastião José de Carvalho e Mello, primeiro-ministro de D. José e antepassado dos accionistas maioritários da Brisa. Porque, se lhe tivessem falado dele, não teria o mesmo falado apenas em enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Teria certamente referido a necessidade de domar o tsunami. Aquilo que a D. Fátima Campos Ferreira se prepara para fazer esta noite, capitaneando um grupo de forcados, mandado avançar expressamente da Moita do Ribatejo.

9 de janeiro de 2005

Incompetência

Por muito que isso nos custe, há que admiti-lo. Para pensar inutilidades, pronunciar discursos circularmente vazios e sugerir sem decoro o disparate basta que se seja presidente da república, ministro, secretário de estado ou mesmo parlamentar.

Para se pensar alguma coisa de forma objectiva, medir as palavras e os silêncios e criticar sem complacência aquilo que se pensa, se diz e se sugere de mau, é preciso ser-se muito mais do que isso. Tem que viver-se de um emprego remunerado abaixo da média europeia, que ter filhos em idade escolar e comprar-lhes os livros, descontar para a segurança social e para o IRS, adoecer e não ter médico de família, pagar consultas a médicos privados, adquirir medicamentos sem comparticipação, pagar portagens nas auto-estradas ao preço dos relógios da Rolex, usar carros de gama baixa durante mais de doze anos, a beberem gasolina ao preço das bebidas importadas, contribuir para minimizar a crise do grupo Espírito Santo e para expandir a fé do engenheiro Jardim Gonçalves.

O avanço da idade leva-nos a todos à senilidade. Os políticos fazem de nós todos senis muito mais rapidamente, enquanto nos esfolam, enquanto pensam que nos enganam, enquanto à nossa custa vão ampliando o seu leque de privilégios e apregoando a crise económica e a fragilidade das finanças públicas. Fomentando a criatividade e encobrindo a ilegalidade e a fraude.

Custa verificar a senilidade do nosso presidente da República, quando de si se construiu uma imagem de ponderação e de bom senso, atributos de cujo uso tem ultimamente exorbitado. Agora essa de sugerir pactos alargados entre o PS e o PSD é como promover a fusão globalizante de duas quadrilhas de Ali Bábá, cada uma com a sua colecção salteadores e de ladrões. Disputando entre si o cargo de chefe. E querer promover o alargamento dos mandatos é como pretender instituir a ditadura pela hipócrita via do voto. Sem ser capaz de pensar que a esmola pode conduzir ao prato de sopa, mas nunca leva ao reconhecimento. E ainda bem!

Goste-se ou não, tem razão o Dr. Vasco Pulido Valente. E por ser incómodo é ele um mal amado de toda esta gentalha que não tem cara e, por isso, não pode ter vergonha. Porque o sistema precisa de facto de novas regras. E novas regras apenas se conseguem com novos intérpretes! Razão tem também o Dr. Soares velho, sobre aquela afirmação pela qual muito foi criticado. Sabendo quem mais o criticou que, naquilo que disse, está também rigorosamente certo.

7 de janeiro de 2005

O guarda-livros

Carlos Lacerda, brasileiro, antigo jornalista e governador da Guanabara, não me consta que tenha inspirado Jorge Amado para que escrevesse O Cavaleiro da Esperança ou Os Subterrâneos da Liberdade. Afirmou-se como homem politicamente de direita e escreveu, seriamente, com essa inclinação e assim também governou um dos Estados do Brasil. Mesmo depois de ter militado pelas esquerdas.

Devo-lhe, perdida numa das páginas da revista Manchete, aquela que considero ainda hoje uma das mais brilhantes caricaturas de António Salazar, o próprio, o natural de Santa Comba Dão. Escrevia ele que Salazar poderia ser comparado a um dirigente de um clube de futebol. Tinha primeiro sido eleito para o cargo de tesoureiro e tinha realizado trabalho meritório. Pagou dívidas, reduziu despesas, pôs contas em dia, deu credibilidade às descontroladas finanças da colectividade, contribuiu para que esta passasse a ser considerada pessoa de bem.

Quando o julgaram como tesoureiro entenderam, erradamente como se viu, que um homem que fora capaz de um tal desempenho naquelas funções seria certamente providencial como presidente e levaria a colectividade à glória. Certamente contrataria os melhores jogadores ao mais baixo preço, venceria jogos e competições, contribuiria para que aumentassem honorários cobrados por encontro, encheria os cofres de ouro e de desafogo. Falharam!

Como presidente António Salazar continuou a exibir os seus aplaudidos atributos de tesoureiro. Contraiu despesas, eliminou o défice, acumulou barras e barras de ouro, confessou o orgulho de tais sucessos, de joelhos e de mãos postas, perante um cardeal que, de facto, parecia ter também vocação de amanuense. Quanto ao resto, sabe-se no que deu. As barras de ouro não se multiplicaram, os índices de natalidade mantiveram-se elevados e a mortalidade infantil também, os portugueses mantiveram-se analfabetos e mesmo assim desertaram, não foi capaz de ter uma visão história do mundo em que viveu. Teve ideias, de todo erradas, mas teve-as. As ideias da classe política que hoje sistematicamente nos engana esgotam-se na etiqueta das cuecas, no corte do fato e no padrão da camisa. Morrendo, por vezes, no fio da navalha de um qualquer cabeleireiro ao serviço da D. Isabel Queirós do Vale.

Aquilo de que urgentemente necessitam as finanças públicas do país é de um guarda-livros. À moda antiga, usando manguitos que lhe protejam os cotovelos da camisa de algodão, que seja capaz de equilibrar as contas e de se orgulhar disso. Que seja suficientemente honesto para poder lidar com dinheiro que lhe não pertença, sem a tentação do desvario e do desfalque. Que não persiga o benefício balofo das mordomias, que não aspire a automóveis de topo de gama, que não inveje a D. Júlia Pinheiro pela frequência com que aparece na televisão. Mesmo que seja para responder a um raro burro dos autênticos.

Não se sabe é onde poderá recrutar-se, mesmo sem concurso, um tal guarda-livros. Mas tenhamos como certo que nenhumas eleições resolverão nada, que a apregoada renovação partidária não levará ao paraíso porque não é feita, que invocar reformas em sentido lato não conduzirá a que se tenham ideias claras sobre os assuntos e a formas estruturais de os resolver. A tribo dos profissionais da política continuará a ser um restrito grupo de alquimistas que tem por divisa o salve-se quem puder. E que sai de cena sempre na expectativa de que a porta seja fechada por quem vier a seguir.

6 de janeiro de 2005

Incompreensões

É lamentável que alguma imberbe e incipiente comunicação social não tenha compreendido o acto público e patriótico do Dr. Santana fazer subir de Ourique ao Porto um seu amigo de infantário, acidentalmente presidente de câmara, para o incluir nas listas de candidatos a deputados pelo círculo da Invicta. Do mesmo modo que no dia anterior já tinha sido igualmente lamentável que a mesma comunicação social não tivesse entendido o contributo para a social democracia que era o convite ao Dr. Pôncio Monteiro e, ainda menos, o avanço social democrata que depois constituiu o desconvite que lhe fez o Dr. Santana. Sendo certo que tendo o Dr. Pôncio compreendido como facada nas costas o desconvite do Dr. Santana, foi capaz de entender como social democrata a presença do mesmo Dr. Santana, no dia seguinte, no estádio do Dragão, a vestir de azul e branco e a apelar ao espírito social democrata dos sócios de camarote. Ainda por cima quando a mesma comunicação social sabe, diariamente e de fonte segura, a cor das calcinhas da D. Cinha Jardim, a marca das ceroulas do Sr. marchand de arte e o tamanho, em plena erecção, da tropical pila do Sr. Frota.

Também mais uma vez se lamenta e se reclama a revisão constitucional que se impõe. Para aumentar os ordenados dos deputados, estabelecer com dignidade bancária a reforma do Dr. Almeida Santos e estabelecer círculos em que os deputados sejam de facto responsáveis perante os eleitores. O Sr. Raul, amigo do Dr. Santana, presidente da Câmara de Ourique e candidato pelo Porto, como é de justiça divulgar, pôs Ourique no mapa, incrementou a confecção e o consumo gastronómico dos secretos de porco preto, manteve à vila os privilégios de condado e, de peito descoberto, marcha para norte a conhecer o Sr. Almeida Garrett e a incorporar a coluna liberal desembarcada em Pampelido. Há-de ter a honra de, vitorioso, transpor as muralhas tripeiras e içar a bandeira da liberdade na Praça Nova. Se não tiver o azar de ser capturado por um absolutista mais radical que o denuncie a D. Miguel e que este o acrescente aos que, pendurados pelo pescoço, oscilarão ao vento frio e invernoso da dita praça.

Mais o Sr. Raul muito gostaria de, como se diz, ser ainda mais valia do que vai ser, na margem direita do rio Douro. Trazer do Alentejo a rentável cultura do sobreiro, com o propósito de aumentar a produção de cortiça e de fomentar o saudável hábito da sesta à sombra do chaparro. Contribuir para a redução dos custos de produção das fábricas do Sr. Amorim, o que significaria o aumento da produtividade e um largo passo do país a caminho dos mais desenvolvidos da Europa como ameaçou o Dr. José Barroso. Revitalizar o comércio das rolhas de cortiça e deixar ao Dr. Rio o seu projecto regional e provinciano de reconstrução das ruínas da baixa. Estender ainda o levantamento de estufas agrícolas ao longo da orla marítima, até à Póvoa, destinadas à cultura da beldroega, divulgar as receitas da sopa de tomate e das beldroegas salteadas à maneira do Raul, com ovos escalfados pelo meio.

Lamentável é, repete-se, que a comunicação social não veja os benefícios que à região pode trazer a impoluta - o Dr. António Lobo Antunes não gostaria do vocábulo mas, graças a Deus, não me consta que leia blogues! - personalidade do Sr. Raul que tem dedicado toda a vida ao serviço colectivo e ao benefício pessoal. Mas há-de aprender!