10 de janeiro de 2005

Tsunamis

Confesso que ainda hoje não compreendo como foi possível à minha geração sobreviver sem o serviço público de televisão. Hoje, creio, teria toda ela perecido vítima da mortalidade infantil e da ignorância inadmissível. Não fosse o serviço público e ainda pouco ou nada teríamos ouvido falar da Mukata. A doença de Arafat e a sua evacuação para França conferiu a um monte de escombros onde o mesmo era mantido refém há dois ou três anos uma inesperada dignidade. Por mim, ainda hoje não faço a mínima ideia do que seja isso de Mukata e se calhar os jovens repórteres que relataram um funeral como se fosse o Sporting - Benfica de sábado passado também não. Mas soa bem Mukata, a par com mais dois ou três vocábulos de árabe e mais dois ou três de hebreu.

Judite de Sousa é das mais cultas figuras que se perfila frente às câmaras da televisão de serviço público, de sorriso pepsodent, cabelinho pintado que há coisas que a idade não perdoa. Sempre que a vejo ler o telejornal sinto-me mais incapaz do que um concorrente do quem quer ser milionário eliminado logo na primeira pergunta. Ela fala em tremores de terra, em maremotos, em tsunamis e creio já a ter mesmo ouvido falar em marmotas. Mas tsunami é, pelos dias que correm, o vocábulo que ofusca a fama e a celebridade do rei do quintal, que já não dorme sem o auxílio de barbitúricos. Ainda ontem um homem insuspeito como Nuno Guerreiro, de longe, realça na Rua da Judiaria tão ampla cultura e tão sofisticada dicção, até no uso da expressão "rizorte de luxo" que, como sabem os poucos portugueses que dominam o mirandês, quer dizer "estância de férias". Sendo certo que a maioria do português comum não sabe o que são férias e ignora completamente o que é estância.

Esta noite Fátima Campos Ferreira, outro rosto ladino da nossa televisão pública, promete fazer a reconstituição do terramoto ocorrido em Lisboa, a 1 de Novembro de 1755 e que, afinal, foi seguido por um enorme tsunami que inundou os túneis do metro - estando a prova ainda no Terreiro do Paço -, derrubou o cais das colunas, paralisou as carreiras para o Barreiro e levou a Carris a deslocar a sua frota de eléctricos para o alto do Parque Eduardo VII, antes deste ser dado ao engate e à pouca vergonha. Apenas, ao que parece, não prejudicou as obras em curso no actual Parque das Nações para não atrasar a inauguração da Expo 98, não deixar no desemprego o engenheiro Cardoso e Cunha e não inviabilizar qualquer negocizinho que, em conjunto, pudessem no futuro fazer o Dr. Nabais e o animador Represas.

No ano em que se comemoram 250 anos sobre o acontecimento, mesmo à expedita maneira portuguesa, parece um bocadinho tardia a reconstituição da catástrofe. Não adiantará nada ou adiantará pouco, como as sucessivas comissões parlamentares de inquérito sobre o acidente do Cessna de Sá Carneiro que, alternadamente, vão concluindo por acidente e por sabotagem. Mas é certo que na altura a invasão do tsunami não chegou ao conhecimento do conde de Oeiras, nem do marquês de Pombal, tão pouco do Sr. Sebastião José de Carvalho e Mello, primeiro-ministro de D. José e antepassado dos accionistas maioritários da Brisa. Porque, se lhe tivessem falado dele, não teria o mesmo falado apenas em enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Teria certamente referido a necessidade de domar o tsunami. Aquilo que a D. Fátima Campos Ferreira se prepara para fazer esta noite, capitaneando um grupo de forcados, mandado avançar expressamente da Moita do Ribatejo.

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