4 de março de 2005

Nação valente

O país passa muito bem sem governo! Desde que se calou a chinfrineira da campanha eleitoral e depois de conhecidos os resultados das legislativas do passado dia 20 de Fevereiro, as ruas perderam a histeria, as cidades parecem ter amadurecido. As quezílias quase que se limitam aos insultos entre condutores e ao atropelo de peões nas passadeiras. A actividade política não se nota, os dirigentes partidários reduziram-se à clausura dos conventos e, de tão amados que eram, ninguém tem saudades deles e não se vê vertida uma lágrima de dor que os lamente. Insistindo em beber vinho, o país parece miraculosamente sóbrio, como se fosse abstémio. Nem se reclama contra as elevadas reformas e indemnizações de que beneficiarão os deputados que, como Almeida Santos e Narana Coissoró, não regressarão a S. Bento. O país sente-se aliviado, embora tarde e a custo elevado, por vê-los pelas costas. Apenas há dois dias atrás os jornais remeteram para uma curta notícia, numa das páginas interiores, os resultados eleitorais das comunidades portuguesas que votaram por correspondência e que, como alguns erros de arbitragem, já não foram a tempo de interferir nos resultados.

Perturbação menor tem sido alguma moderada agitação no seio do PSD à procura de novo líder que substitua Santana Lopes. A sucessão é, como se sabe, extraordinariamente difícil. E, mesmo não sendo militante, não me tem saído da cabeça a humilde manifestação de Marcelo Caetano quando foi indigitado para suceder a António Salazar dizendo que a nação tinha que se habituar a ser governada por homens normais. Como sabe, não se habituou. A sucessão de Santana é uma coisa parecida, tão trágica como a ocupação espanhola que, para mal dos nossos pecados, não vingou. E tão difícil como a de Salazar, excluindo a castidade, o celibato e as botas de meio cano. Mas, convenhamos, é tarefa árdua encontrar quem tenha tal versatilidade no discurso do disparate e na prática da bojarda. É por isso que se entregam à refrega o médico pediatra, por equívoco presidente de câmara, aliás equivocamente eleito deputado a S. Bento e um advogado de baixo perfil que reclama o estatuto de saca-rolhas em vez do depreciativo epíteto de porta-chaves. Sendo certo que provém de Fafe, a única terra portuguesa onde a justiça funciona em pleno, por métodos expeditos, sem atrasos, sem artifícios dilatórios e sem ardilosos procedimentos que lhe dificultem o processo. Como os que os advogados aprendem nas faculdades para alegar a inocência dos seus clientes e justificar os altos honorários sem recibo.

O caso político do momento nem sequer é saber se José Sócrates está em Lisboa, na Serra da Estrela ou nos picos da Europa ou no Mosteiro de Singeverga a analisar as respostas recebidas aos anúncios que fez publicar para admissão de ministros, de ajudantes e de adjuntos. Com a taxa de desemprego que se verifica, as respostas foram muitas. E ele tenta, segundo se presume, garantir as primeiras colocações para abater à tal meta de 150.000 que andou a gritar durante três meses. Sendo que os primeiros, serão recebidos pelo presidente da república, em cuja presença assinarão os contratos e receberão as felicitações e os cumprimentos de amigos e familiares que já terão solicitado o empenho para lugares de vigilantes, empregadas de limpeza e cantoneiros. Quanto a coveiros não há vagas, nem para o Alto de S. João, nem para Agramonte.

O caso político - e até mais humano que político - é o de Santana Lopes que, de repente, sem sentença transitada em julgado, é despejado de S. Bento sem direito sequer a duas assoalhadas num bairro social da câmara, onde possa pernoitar nestas noites de temperaturas abaixo de zero. Não é que ele se preocupe consigo, sempre foi um homem desprendido dos bens materiais, é chapa-ganha, chapa-gasta que, se for à conta do Zé, até não custa nada. Ele, na maior parte das vezes, nem precisa de cama certa: ou não dorme ou dorme onde calha, se lhe oferecerem guarida. A barba de dois dias sempre lhe dá um ar de modelo, mesmo fora de prazo, e o cabelo começa a dispensar a escova e a ser facilmente domado pela acção dos dedos de uma mão.

Para já, ao que parece, recusa sentar-se em S. Bento. O ordenado é pequeno, a verba para ajudas de custo ainda menor, as viagens ao estrangeiro já não são como eram e os gabinetes são tão exíguos que não lhe dão para receber os filhos, os familiares e os amigos. Muito menos para encomendar uma pizza familiar, com direito a uma garrafa de Coca-Cola de dois litros, e reparti-la pelos convivas, decentemente sentados à volta de uma mesa redonda, sem pé de galo. Ainda mesmo que comendo à mão e lutando pela posse do último pedaço.

Está mais tentado a dar novo alento ao desenvolvimento da cidade de Lisboa, paralisado com a sua ida para o governo. Mesmo fora de mão, distante e em local de má fama, sempre poderia dispor de uma casita meio rural, com a erva a medrar mesmo até à soleira da porta. A autarquia, sem nenhum favor, sempre fornece um automóvel topo de gama, conduzido por motorista fardado e usando boné que pode levar as crianças à escola e ir buscar as amigas convidadas para a ceia. Além disso pode entregar-se à concepção de grandes projectos. Mais túneis, mais casinos, mais obras de arquitectos de nomeada que Bush não tenha mobilizado para a pacificação do Iraque. Ou que tenha mobilizado mas que, entretanto, tenham terminado a comissão e regressado vivos.

Esta actualidade política é uma calmaria, está-se bem, o governo não é preciso para nada. O Jorge Perestrelo diria que é disto que o povo dele gosta. O equilíbrio das contas públicas pode até conseguir-se por esta via. Nem sei como é que o Luís Delgado, tão erudito como o Jorge Perestrelo, ainda se não lembrou disto e o escarrapachou nas colunas do Diário de Notícias!

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