21 de dezembro de 2012

Natal para os meninos de África

Para os meninos de África não há pinheiros nem caruma espalhada pelo chão, o sol brilha sempre – porque em África o mar e o sol são de graça! -  e os dias são iguais às noites. Em África, branco ou preto são apenas a cor da epiderme e os meninos ainda jogam à bola com uma bola de trapos, têm um riso franco e estridente e os dentes muito brancos, sem o excesso civilizado de açúcares e de cáries. Os meninos de África andam descalços, dão topadas nas pedras dos caminhos, perdem-se no meio dos capinzais, tomam banho no rio e secam-se nas margens, à sombra de árvores de folha perene, enquanto brincam as brincadeiras deles.


O seu horizonte vai até onde o seu olhar alcança, como a miséria desumana em que crescem e a fome de que se alimentam. Procurando nos sacos do lixo deixados na beira das ruas, os restos rejeitados por estômagos fartos de kamanga e de petróleo. Os meninos de África são universais, na ignorância a que os condenam e na fome de que apenas os salvam as intenções e os decretos. E ainda na saudável ingenuidade de se entregarem sem condições e sem competição por rótulos inventados por quem os condena a um destino fatalista de barriga vazia e pé descalço.


Os meninos de África não conhecem essa palavra Natal, nunca ouviram falar da Lapónia, não sabem sequer que rena é bicho, nem que o Pai Natal viaja de trenó a distribuir prendas, descendo pelas chaminés. Para eles nem o domingo é dia de descanso, é só mais um dia de fome, com a esperança ausente, e a brincadeira desabrida dos simples, dos ingénuos, dos que não têm maldade nem no brilho do olhar nem na pureza imaculada de corações pequeninos e solidários. Os meninos de África não sabem o que são prendas, o que são brinquedos, o que é coração.

A sua neve não cai nos cumes das montanhas nos dias frios de inverno. A sua neve cai com um tempo tropical e uma temperatura superior a 30 graus, os corpos pingando de suor. A sua árvore de Natal é um imbondeiro gigante, emergindo grandioso e imponente no meio da savana, com zebras, girafas, palancas e outros bichos dispersos na paisagem. E reunindo em volta todos os muitos meninos, de olhar brilhante e pés descalços. As mukuas são bolas de cristal penduradas dos ramos, faiscando à luz das estrelas. Que se colhem e se saboreiam quando se pode e se lhes chega.

Natal não era árvore, prenda, brinquedo, doces, centro comercial, alegria breve. Natal era um pão para cada menino, uma água boa para beber. Era uma roupa simples, um sapato, uma escola, um sistema de saúde, cuidados de higiene, uma palavra meiga, um carinho. Um Deus. Um Deus ominisciente, um Deus omnipresente. Porque todos os meninos do mundo são filhos de Deus!

16 de dezembro de 2012

Entre as margens


Entre as margens todas as águas são rios que procuram o mar que lhes foge. E bem elas sabem, ao contrário do sol que nasce, que o mar se denuncia quando pela tarde esconde no regaço o sol que se põe. Nunca as águas correm para a montanha que as pariu e, mesmo que se enganem no trajeto, podem correr para sul ou para norte, sem o auxílio de bússolas e sem erros de paralaxe. Mas regressam sempre ao rumo certo, orientadas pela fome impaciente das gaivotas e pelo rasto de fumo que deixam os barcos que saiem dos portos e se perdem para lá do horizonte.


Não é fácil ser água doce e procurar tranquilamente o sal apetitoso que lhe falta e que mora nos oceanos que se espraiam para lá de todas as altitudes. Que o sal é como este ar suave que se respira à sombra dos pinheiros que se estendem à beira mar, cheirando a resina e a maresia. Nada é tão urgente como chegar ao mar revolto que nos acolhe, atirando a espuma das ondas para o céu baixo onde, assustadas, esvoaçam medrosas as gaivotas e se limita a dimensão da esperança. Um mesmo mar imenso e sem calemas fica ainda a ocidente, a sul do equador. E vem morrer na praia bordada de casuarinas com as copas acenando um adeus carinhoso ao horizonte que se curva no infinito.

4 de dezembro de 2012

Re-toma


Retoma é um termo científico só utilizado com propriedade pelos economistas e pelo senhor silva. Para o compreender não basta saber-se ler, ter frequentado um curso de cristandade ou ter assistido a um jogo do Benfica no terceiro anel do defunto estádio da luz, mesmo que o resultado tenha sido favorável à equipa visitante. É preciso, no mínimo, ser-se politólogo (que eu confesso não saber o que é), cientista político (que eu volto a confessar também não saber o que é), analista político, comentador económico, Camilo Lourenço ou professor Marcelo.


A ortografia, utilizando o tracinho (porque traço era a Marlyn Monroe e essa já partiu há cinquenta anos), creio que decorre do propalado acordo ortográfico que o poeta que dirige o centro comercial de belém tem permanentemente na mesinha de cabeceira, ao lado do velho testamento e da imagem da irmã Lúcia. Antigamente um conhecido linguista da época, que modulava bonecos em barro nas Caldas da Rainha (não são esses em que estão a pensar, mentes perturbadas e perversas), chamado Bordallo Pinheiro, escrevia-o sempre sem tracinho e sem o prefixo (que toda a gente sabe o que é desde que aufira cem euros do rendimento social de inserção; tão bonito nome para tão curto dinheiro).

Mas a re-toma explodiu ontem, segunda feira, nos noticiários de tudo aquilo a que chamam orgão de comunicação social, incluindo o Borda d´’agua e o Seringador, que também trazem as fases da lua e os horários das marés na praia de Carcavelos. E o ministro Álvaro não deve tardar a aparecer perante as câmaras, com o entusiasmo histérico do fantasminha das finanças, apregoando a salvação do país, a beatificação do condestável e o investimento estrangeiro em mais duas lojas de chineses no Martim Moniz.

O país estar salvo significa que a magra pensão do senhor silva não será reduzida, nem tão pouco congelada, e há de dar para pagar as despesas domésticas, a mulher a dias e as portagens até ao casebre da aldeia da Coelha, para ir passar um fim de semana ou outro. E que os senhores Américo Amorim, Soares dos Santos e Belmiro de Azevedo não correm o risco de cair na pobreza, como sensata e justificadamente temiam. Pelo contrário, os seus nomes hão de subir na relação dos mais ricos do mundo (empreendedores é hoje mais sonante e mais politicamente correto), periodicamente publicada pela revista americana Forbes cujo diretor pensa, depois de consultados atlas atualizados, que Trás-os-Montes fica algures na península itálica.

E tanto assim é que nunca é demais repetir a importante notícia que ontem encheu os noticiários durante todo o dia, relegando a bancarrota para a Grécia e a prisão domiciliária para o Dr. Duarte Lima. Os combustíveis, cujo preço hoje varia em função das cotações da cortiça e das plantações de chaparros no Alentejo, registaram a maior descida do ano, e já vamos em dezembro. O quê, desceram oitenta, cinquenta, vinte ou mesmo dez cêntimos por litro? Não, nada disso. Desceram 2 (digo bem e por extenso: dois) cêntimos no preço a que se vão vendendo, à volta do euro e meio!

O país re-toma o ânimo e a alegria. Para o reveillon! E o senhor Manuel Sebastião, da entidade reguladora independente (tão independente que foi o governo a nomeá-lo), tem novo mandato assegurado. Pela certa!

2 de dezembro de 2012

Domingo vazio


Pouco os ponteiros do relógio passaram além das 18 horas e as ruas da cidade emudeceram à luz mortiça da iluminação pública. O dia sucumbira pela madrugada, a um frio glaciar que desde sempre me entorpece os gestos e a memória e me enregela as mãos e os pensamentos. Ninguém, como eu, terá percorrido todos os mútiplos caminhos do infortúnio, sentido todas as cores cinzentas da infelicidade e da solidão.

Os meus dias deixaram de ter encruzilhadas, não há mais que decidir a direção ou o sentido da marcha. Nenhuma rota vai dar a nenhum destino, só há deserto em volta. Não cheguei a lado nenhum e toda a gente se aproveitou disso e alguma ainda se alimenta à custa dos destroços. O frio da madrugada fez-te amanhecer vestida de organdi azul, rasgado pelo ímpeto do vento que não houve, e já não tive olhos para reparar nisso. Nem sequer vontade que te ajudasse a passajar o corpo maduro de outonos.


Toda a gente com que me cruzo e que não conheço, porque eu não conheço ninguém, tem um conhecido, um amigo, um familiar que lhe fale do sistema solar e das fases da lua. Eu, se quiser saber a hora das marés, tenho que me sentar na areia da praia e esperar que a espuma das ondas me cubra os pés e me anuncie a hora da praia-mar. O frio que me enregela os pés no inverno não é diferente do que me tolhe a coluna no estio.

Lágrimas sentidas escorrem-me pelas faces, são rios sem oceanos que as acolham. Nunca vai sobrar uma pequena enseada calma e tranquila que as abrigue. Nunca vai sobrar uma luz frouxa que me ilumine nem um calor morno que me afague. Para mim só sobra o que sempre tem sobrado: a desesperança e o vazio em volta.