8 de janeiro de 2013

Todas as palavras, poucas palavras


Nunca se dizem todas as palavras, é impossível dizer todas as palavras. Não por causa de leis, normas, regulamentos, decoro ou bons costumes. Não por causa do vernáculo, das mães de família rigorosamente educadas em colégios de freiras, com batas de xadrez azul e meias grossas de algodão a tapar-lhes os joelhos para a ida à eucaristia. Não por causa do atentado ao pudor e com medo da polícia, Miragaia sempre foi superior a tudo isso. E a Viela do Anjo sempre foi a sala de chuto que se sabe, entre moedas recolhidas durante o dia, porras e palavrões descendo pela berma da rua até à beira rio.

As palavras todas não cabem em nenhum dicionário, nunca se soltam de nenhuma boca. São torrentes de lava do vulcão dos Capelinhos, sereno durante décadas, pronto a riscar do mapa toda a ilha do Faial, submergindo o verde dos caminhos e o azul fresco das hortênsias. Galgando todas as barragens que se construíram no leito dos rios, obstruindo canais, danificando turbinas e deixando às escuras todos os sítios onde podem ser ditas sem luz que as aprisione. E quando se julgam esgotadas ei las que brotam do teu colo, que espreitam provocantes do meio dos teus seios, tão só sexualidade e som.


Não há palavras suficientes para evitar nenhuma guerra, impedir genocídios, chegar a tempo de suster o tiro e evitar o massacre e a ditadura. Cada homicida trás uma cabeça cheia de intenções e um bolso a transbordar de palavras ocas de paz e fraternidade entre os homens de boa vontade, prontas a despejar nas manhãs de domingo sobre os fieis que se acumulam na praça de São Pedro ou que oram à hora certa com o olhar procurando Meca no horizonte desconfortável de uma rosa dos ventos ou nas contas dispersas de um terço.

Palavras vulgares fazem de simples curiosos, ávidos de sucesso e pródigos em erros de ortografia, candidatos a poetas celebrados, romancistas que nunca serão lidos, potenciais vencedores do Nobel da literatura e companheiros de Neruda num banco frente ao oceano, procurando-lhe a alma para além do rasto que deixam no ar os aviões que levam a miséria de continente em continente, acima de trinta mil pés, num sítio onde ele nunca esteve.

Não acabam e não são bastantes todas as palavras e por isso se inventam novas a cada estalar dos polegares. Nos gabinetes dos ministros e nas salas solenes dos parlamentos onde se enfadam políticos, acompanhando as cotações da bolsa e assinando leis que facilitem as despedimentos e promovam o emprego, enquanto lhes cresce o saldo das contas bancárias e uma multidão faminta se aglomera aos portões das suas casas de férias. Novas palavras que não cabem nas gavetas nem se incluem nos dicionários, mas que jorram de bocas alarves e patriotas, sem autorização de gramáticas ou de acordos ortográficos.

Nunca se dizem todas as palavras e nunca são suficientes para dizer coisa nenhuma todas as que habitam as páginas dos jornais, que bailam ao sabor das ondas hertzianas e que saltam dos écrans dos televisores, invadindo as salas vazias dos cafés e as romarias de verão. A dizer nos de tragédias e a contar-nos de projetos e prosperidades virtuais que nenhuma realidade vai conhecer. Tudo palavras a mais, mesmo quando não chegam para o nada que dizem!

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