27 de fevereiro de 2013

Empreendedorismo


Portugal nunca me fez pasmar por boas razões mas, por más razões, cada vez me faz pasmar com maior frequência. Por exemplo, o palavrão que utilizei para título deste apontamento tem um tal alcance que já ganhou uma secretaria de estado no actual governo, mesmo que a data de validade do respetivo titular não aconselhe o seu consumo.

Mas, pior do que isso, é ter visto há poucos minutos, na televisão pública, que uma qualquer associação empresarial anda pelas escolas a meter nas cabecinhas das pobres criancinhas o mesmo palavrão e um conjunto de conceitos que lhe são abusivamente associados, desde empresa, proveitos, lucros, resultados, etc, etc, etc. E pergunto-me se, mesmo sob a tutela da troika, o país não tem um ministro da educação. Que nem precisa de ser inteligente ou qualificado, mas a quem reste uma ponta de bom senso. Para pura e simplesmente impedir tal atividade e vedar o acesso daquela e de outras associações às salas das escolas.


Apenas porque as criancinhas vão à escola, em primeiro lugar, para aprender a ler, a escrever e a contar como se dizia anos atrás. Coisa que, como se sabe, não fazem. É do conhecimento geral que não sabem falar português, menos ainda o sabem escrever, que fogem da matemática como o diabo da cruz e que cada vez mais fogem da escola como o português do ministro das finanças. E vamos expulsar a troika e ganhar o céu com base em empreendedores broncos e analfabetos, que não sabem assinar e que disso dará testemunho um qualquer amanuense na idade da reforma, aparentando rondar a idade de 80 anos? Ensinem as criancinhas a ler, a escrever e essencialmente a pensar. Na altura própria elas terão adquirido a capacidade de ter a iniciativa seja do que for. De pensar empresas, de assaltar bancos, de traficar droga, de roubar carteiras. Ou mesmo de desenrascar uma côdea dura para enganar a fome como qualquer sem abrigo.

Há conhecimentos e coisas que são absolutamente básicas e que qualquer pessoa compreende, incluindo o distinto secretário de estado do empreendedorismo e de mais não sei o quê. E a estupidez não creio que seja uma delas!

Estão zero graus


Estão zero graus. Deve ser madrugada e o termómetro vagueia pelo frio noturno, acima de zero, abaixo de zero. Penso que me acolho à tranquilidade morna dos teus braços, onde adormeço a memória de ter falhado todos os caminhos e errado todos os percursos. Suponho admirar a serenidade aparente com que dormes e com que ignoras este desatino em que tenho andado à deriva, neste mar imenso de onde nunca se divisa terra e onde não chegam barcos nascidos das profundezas do oceano.


Mas sabes, a noite cruza-se com a madrugada, mesmo que ambas partilhem horários e coordenadas. Como a amizade se cruza com o amor que se julga e com o desdém que se sente, entre o pôr do sol e o nascer discreto da lua nova. Mesmo quando estão zero graus, a neve acumula se nos cumes das cordilheiras e os corpos transpiram só de sentir que, afinal, o equador é apenas uma linha imaginária onde o tempo aquece e o mar repousa à sombra tropical das palmeiras. As casuarinas da praia acenam ao sabor da mais suave brisa, não há vento nem paixão que lhes modifique os hábitos e os destinos. Tão certo como Benguela, um nome mítico, estar povoada de acácias rubras que é preciso ver de perto para acreditar que existem.

Mais fácil do que querer é ter uma rosa dos ventos que rode com a velocidade de um catavento, sem se deter em nenhum dos pontos cardeais e sem saber nunca de que lado vem o vento sul. É ter uma bússola que não encontra o norte e cujo ponteiro aponta para o mar alto, onde ninguém o procura, e de certeza o não encontra, no acaso fortuito de dois dias. Difícil mesmo é saber que o sol nasce sempre a oriente, mesmo que Pessoa o não escreva nos poemas. É saber que, por mais voltas que dê, a bússola acaba sempre por apontar a norte, seja ele real ou magnético. Complicado é não ter norte, complicado é não saber de onde sopra o vento!


25 de fevereiro de 2013

Amanhecer


É cedo. Sopra este vento frio da alvorada em que se te perdem todos os gestos e todas as palavras. Não digas nada do que pensas até que amanheça e o brilho do sol se erga no horizonte. E substitua a luz mortiça dos candeeiros que fizeram da noite um sítio de quarto minguante. Depois de amanhã será lua nova, podemos imaginá-la para lá de todas as nuvens que nos encharcam o chão onde espraiamos os passos curtos. Só não quero que assim, de repente, seja lua cheia e as ondas da praia-mar saltem por cima do molhe e arrastem barcos e detritos para além da linha das marés.


Deixa-te ficar nesta penumbra líquida que cheira a rosas e espalha pelo chão pétalas cansadas de camélias. Descontrai-te, relaxa-te, espreguiça-te, deixa que a madrugada seja já ontem e o teu corpo reste inteiro, macio e morno, perfumado e fresco. Já não promessa, ainda não certeza, jamais passado. Deixa que o dia entre sem pressa pelas frinchas da janela, te pouse na fronte, te ilumine o sorriso seguro e certo, te enrole os braços esguios à volta do meu pescoço numa carícia que me escorra pelo corpo ao ritmo sonolento da manhã.

Eu sei! Para além do nosso desejo, mais dia menos dia, há de ser lua cheia, com o mesmo rigor que vem nos almanaques que sabem tudo, das sementeiras às horas a que o sol está por trás de nós e não o vemos. E será lua sem nuvens, rainha num céu de estrelas, redonda e macia como veludo, espelho convexo de todas as imagens surreais que se lhe passeiam à superfície, sem dimensão e sem destino.  Afaga-a com o olhar meigo e longo como a distância a que estamos dela e vê como o mar da tranquilidade se abre para nos dar passagem, livre de peixes e de conchas, só pérolas em vez de areia, lodo e ansiedades. Aconchega-te à berma do meu caminho, posso ouvir-te a respiração como um sussurro vindo do outro lado do mundo, tão aqui, distante e próximo. Sentir como o calor do corpo se te espalha pelo amanhecer e como um perfume delicado e sereno, me invade as narinas e me inunda o pensamento. Como flor de tília em tardes de verão. Afinal nunca é cedo demais!

24 de fevereiro de 2013

Serralves, antes que o inverno acabe


Serralves é uma rua por onde ninguém passa, um portão por onde se entra, um mundo inteiro que se estende sob os nossos pés e se alarga para lá do nosso olhar. Serralves é um edifício de que quase se não dá conta, um museu, Álvaro Siza escondido em cada recanto de luz que enche todos os espaços e jorra de todas as janelas. Um labirinto em que apetece perder-mo-nos, uma ansiedade que se dissipa, um fármaco que se poupa.


O edifício é novo, arejado, sóbrio. Tanto que se não dá por ele e se não consegue descrevê-lo com um mínimo de rigor. Tudo o que se pensar ou que se disser fica aquém do que se vê e do que se  sente. E no entanto ele está ali, discreto, quase perdido junto ao muro que protege uns vastos hectares de terreno, como se tivesse resultado de escavações arqueológicas que não buliram com o meio ambiente. Percorre-se-lhe o espaço que ocupa, as salas que se sucedem, as exposições que exibe e a luz que se não perde. Que não nasce a oriente e que se não põe a ocidente.

O parque fica para lá dos portões sempre fechados, por onde ninguém entra, salvo nos dias festivos, de ainda maior afluência e acessos grátis, tanto quanto sei. E espraia-se por terrenos diversos, acolhe flores, aromáticas, espécies seculares, desce escadas, contorna lagos, uma pausa algures para um café. Uma alameda de liquidambares que os biólogos um dia me dirão o que são, onde a primavera começa e o inverno acontece. E, sorrateiramente, acaba se nos descuidamos. Tenho uma paixão no parque, silenciosa, convicta, para toda a vida. Um castanheiro, junto ao roseiral, ainda de ramos despidos, erguidos em prece para que a explosão da primavera lhe traga roupa nova.

A casa dá o nome a todo o espaço, com a entrada principal virada a norte, onde corre, tranquila, a rua de Serralves. O portão fechado, a porta principal também. A cor rosa empresta-lhe um ar distinto para que sobressaia no meio do ambiente deslumbrante que a rodeia. Ali morou gente, dali se avista tudo, ali pisamos mármores que já serviram outros propósitos, deles se fez conforto de lareira, requinte de escada, utilidade de banheira.

Por isso Serralves tinha de ser. Rapidamente, antes que o inverno acabe!

23 de fevereiro de 2013

O “erro” que se adivinhava


Como se sabe o senhor Silva não é uma inteligência brilhante. Mas é uma esperteza saloia. E isso sabe-se também desde que, para fazer a rodagem a um automóvel novo, escolheu o percurso de Boliqueime à Figueira da Foz, que era o que ficava mais à mão e que ele conhecia como as palmas das mãos, desde os tempos de escola. E sabe-se que regressou, assobiando o tia anica de loulé, investido nas funções de régulo por mais de 10 anos e palhaço para subir a coqueiros e ignorar barreiras para a vida toda, sem nenhumas dúvidas e com muito raros enganos.

Na lista de honra dos seus amigos, afilhados, compadres e protegidos está a nata da alta finança, do empreendedorismo (seja lá isso aquilo que for) e do banditismo nacional. O homem, que tem com a língua pátria a mesma relação afectiva que tem com uma fatia de bolo-rei, descobriu agora, no morno remanso de um serão para que todos contribuímos, como se ele fora mais do que o rei de Espanha, a sua preclara vocação para a linguística e certamente para o estudo do professor Lindley Cintra. E tanto assim que consuma um golpe de estado de sacristia, pela simples troca de uma vogal, pela qual terá sido responsável o descuido da Imprensa Nacional e a miopia de um revisor de provas.

Sendo que, todavia e racionalmente, não recolhe da serôdia vocação mais do que a esperteza saloia que já exibia na insuficiência da pensão de reforma que lhe atribuíram para pagamento das despesas da barraca da aldeia da Coelha.  Mas os titulares dos orgãos de soberania do país não são flor que se cheire. Sabe-se que não são competentes e que não têm vergonha, atributos corriqueiros. Seria demasiado esperar que fossem mais honestos do que Duarte Lima ou Dias Loureiro, dois dos afilhados predilectos do incrível senhor Silva. Que acaba, literalmente, de tirar mais um coelho da cartola. O morcão!

17 de fevereiro de 2013

Mister Zuca quê?


Antes de mais o seu Facebook é um negócio que fez de si precocemente milionário sem saber como. Mas isso seria o menos, o seu país é assim um género de Entroncamento em grande, onde acontecem todos os fenómenos e se produzem os mais obtusos legumes, desde abóboras com olhos a nabos com lugar no congresso. E, de forma que não compreendo, fomentando e defendendo a paz com unhas e dentes, fazendo a guerra. Em todos os tempos e em todos os lugares, sem a mínima noção de bom senso e, menos ainda, de ridículo.


Mas, mais do que isso, o seu Facebook é abelhudo e intrometido, sempre a meter-se na vida das pessoas que gratuitamente contribuem para o seu enriquecimento. Para que saiba, neste país que os seus conhecimentos de geografia julgarão uma província de Espanha, aqui até uns patetas subscreveram páginas como Aníbal e Pedro, nomes que vosselência julgará, e bem, de ascendência mexicana. Sempre a perguntar que estás a fazer, como passas, o que acontece, quando é que chove, quando é que é a lua cheia. E sem nunca indagar sobre Guantânamo, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Cuba, Coreia do Norte e por aí fora.

Sempre a sugerir que fulano arranjou não sei quantos amigos, outros estão à espera, fulano encontrou não sei quantos, talvez conheças esta meia dúzia que até têm amigos em comum. Mais do que isso, a permitir práticas pidescas, um género doméstico da CIA, e a permitir seguir quem se quer, sempre no escuro, de gabardine puxada para o pescoço. E depois, sem explicações antes ou depois, a bloquear as pessoas que lhe alimentam a fortuna por períodos longos, a pretexto de ter enviado pedidos de amizade a pessoas que não se conheciam, por exemplo. Quer dizer, o senhor Zuca não sei o quê impinge à gente a gasolina e os fósforos e depois amordaça-nos, sem direito a dizer palavra, porque fizemos fogo. Ora, bardamerda!...

16 de fevereiro de 2013

Ponte da Barca


Cada regresso é sempre uma primeira vez e não sei sequer dizer porque torno. E como uma vez chegado, caminho e me aconchego ao rio, como este se aconchega à vila e às pessoas. Com o fascínio do peregrino que alcançou o seu destino, mastigando distâncias, carregando fadigas e apoiando-se no cajado. A concha de santiago pendente da cintura, pronta para a água fresca e cristalina que antigamente jorrava das encostas.


O Minho era verde, tinha a cor da esperança. Hoje o Minho deixou de ser verde, tem a cor variada do abandono e a esperança foi arrastada pela força tumultuosa da corrente. A esperança era o homem que a lançava à terra, que a via rebentar e crescer pela primavera e pelo verão dentro. Era ele que a moldava com a ponta afiada de uma tesoura de poda, e ficava à espera de boas e fartas colheitas. Hoje os campos são apenas campos por onde o rio pode alargar a sua fúria ou espreguiçar-se. Não resultarão da cheia perdas que se chorem durante um ano, as águas revoltas não destruirão grandes culturas nem sacrificarão grandes manadas. Mas deixarão maiores ruínas, depositarão nas margens novos destroços. Na grande maioria dos casos a poda já nem é feita e sementeira é um termo arcaico que os próprios dicionários deixarão de mencionar.

E no entanto, pela estrada fora, a cada metro de caminho, explode o amarelo aveludado e alérgico das mimosas. Humilhando o tronco desengonçado dos eucaliptos que dominam a paisagem, aqui e ali ameaçando com uma pequena e vulgar flor branca, que passa despercebida até às ervas que ladeiam as bermas. Crepes de neblina descem pelos montes, envolvem os povoados, já não há chaminés que fumeguem o odor quente do café. O país conhece-se melhor percorrendo-lhe as estradas que o esventram. E que já quase não levam a lado nenhum!

15 de fevereiro de 2013

Onésimo Silveira


Foi assim como se fosse ontem, a meio de uma tarde amena, a mil e setecentos metros, clima temperado de altitude como parece que dizem os geógrafos. No Huambo, na livraria e papelaria Lello, entre uma caixa de lápis de cor e uma sebenta, o meu amigo João Lara chamou-me a atenção para quem, vindo do lado da Associação Comercial, atravessava a rua: sabes quem é aquele gajo? Entretido a namorar os livros que moravam nas estantes, cujo custo era grande demais para o meu bolso, tive de virar-me. As horas encurtavam-se para o sol que se apressava a caminho do horizonte, balbuciei que não e ele disse-me quem eras e perguntou-me se queria que te apresentasse.

Figura de pequena estatura, franzina e frágil, coxeando, subiste os degraus e entraste na loja. Lembro-me que estavas no Moxico, colocado nos serviços de saúde, e tinhas ido fazer exames do sétimo ano ao liceu de Benguela, por tua conta e risco. Se me lembro do que depois me disse o João, três cadeiras, dois dezoitos e um dezanove. Diferente daquilo a que eu próprio me habituara, estudante a tempo inteiro, convencido de que a poesia era também um caso de persistência e que eu, naturalmente, ia chegar lá e legar à posteridade mais poemas do que todos os heterónimos de Pessoa. Tu eras já gente crescida, nos relacionamentos, na poesia, nos livros já publicados. Casa dos Estudantes do Império, Imbondeiro, Bailundo, uma coleção de vida efémera. Mas conhecemo-nos ali, ao balcão da Lello, e fiquei a dever ao João a naturalidade de mais um gesto de amigo de sempre.

Perdemo-nos no espaço e no tempo, deixei de saber de ti, eu próprio me mudei para Luanda. Na bagagem sempre o mesmo gosto pelos livros e, à capa disso, a felicidade de ter conhecido e convivido com gente mais velha do que eu, tendo um nome e coisas já divulgadas, o que eu não tinha, nem tenho. Nem tão pouco por divulgar! Até que um dia nos cruzamos na Avenida Álvaro Ferreira, a do hospital e do cinema Restauração. Não nos reconhecemos e seguimos, mas alguma coisa me chamou a atenção. Parei e virei me. Seguias na tua caminhada, coxeando, pé acima, pé abaixo, ainda hoje o teu país te conhece, carinhosamente, pelo Coxinho. Gritei: Onésimo! Viraste-te a ver quem te chamava e caminhamos ao encontro um do outro. Abraçamo-nos e passamos a encontrar-nos amiúde. Falando de poesia, bebendo uns finos, saboreando o picante apetitoso de umas kitetas à mesa modesta de qualquer bar da cidade.

Depois desencontramo-nos de novo e de repente, até hoje. Só o futuro e o boato me falou de ti e dos teus destinos. Portugal, China, Suécia, delegado do PAIGC, os boatos falando de alguns excessos, com a cobertura patriarcal de Amílcar Cabral. Depois tudo mudou e soube-te de regresso a Cabo Verde. Presidente de Câmara, embaixador em Lisboa – e eu sem te ter ido visitar! – alto funcionário das Nações Unidas, de novo o Mindelo, para o descanso e o repouso. Vida cheia, creio que pouco tempo para a poesia. Mas é por esta que te recordo, foi ela a arma que empunhaste, foram as palavras os projéteis que disparaste!

12 de fevereiro de 2013

Amanhecer


É cedo. Sopra este vento frio da alvorada em que se te perdem todos os gestos e todas as palavras. Não digas nada do que pensas até que amanheça e o brilho do sol se erga no horizonte. E substitua a luz mortiça dos candeeiros que fizeram da noite um sítio de quarto minguante. Depois de amanhã será lua nova, podemos imaginá-la para lá de todas as nuvens que nos encharcam o chão onde espraiamos os passos curtos. Só não quero que assim, de repente, seja lua cheia e as ondas da praia-mar saltem por cima do molhe e arrastem barcos e detritos para além da linha das marés.


Deixa-te ficar nesta penumbra líquida que cheira a rosas e espalha pelo chão pétalas cansadas de camélias. Descontrai-te, relaxa-te, espreguiça-te, deixa que a madrugada seja já ontem e o teu corpo reste inteiro, macio e morno, perfumado e fresco. Já não promessa, ainda não certeza, jamais passado. Deixa que o dia entre sem pressa pelas frinchas da janela, te pouse na fronte, te ilumine o sorriso seguro e certo, te enrole os braços esguios à volta do meu pescoço numa carícia que me escorra pelo corpo ao ritmo sonolento da manhã.

Eu sei! Para além do nosso desejo, mais dia menos dia, há de ser lua cheia, com o mesmo rigor que vem nos almanaques que sabem tudo, das sementeiras às horas a que o sol está por trás de nós e não o vemos. E será lua sem nuvens, rainha num céu de estrelas, redonda e macia como veludo, espelho convexo de todas as imagens surreais que se lhe passeiam à superfície, sem dimensão e sem destino.  Afaga-a com o olhar meigo e longo como a distância a que estamos dela e vê como o mar da tranquilidade se abre para nos dar passagem, livre de peixes e de conchas, só pérolas em vez de areia, lodo e ansiedades. Aconchega-te à berma do meu caminho, posso ouvir-te a respiração como um sussurro vindo do outro lado do mundo, tão aqui, distante e próximo. Sentir como o calor do corpo se te espalha pelo amanhecer e como um perfume delicado e sereno, me invade as narinas e me inunda o pensamento. Como flor de tília em tardes de verão. Afinal nunca é cedo demais!

10 de fevereiro de 2013

África


África podia ser um bairro e não é. Podia ser um sítio, um lugar, uma aldeia, uma vila, uma cidade. Podia ser um país, um continente, um satélite, um mundo. Podia ser um sistema planetário, um universo, um faz de conta. E não é, porque África não cabe em nada disso. África é um primeiro nome, e um segundo, e uma sequência interminável deles, num alinhavo provisório que se não sabe onde começa ou quando acaba.

África é um nome de lugar, um vikanjo escondido para lá do carreiro, correndo a custo por sob as frondosas copas das árvores tropicais. É uma chuva de meia hora, que cai com a intensidade de uma paixão adolescente que se sonha. Um extenso capinzal que nos encobre e que acolhe na sua solidária dimensão répteis e insetos, com pequenos pássaros balouçando lhe nas pontas, ao ritmo de um vagaroso vento quente que chega do deserto.


África é nome de rio que corre para oriente ou para ocidente, com o sol sempre a nascer por detrás da mesma mulemba, é nome de todas as Kalandulas em que se precipita ao longo do percurso, nome de todas as curvas e contracurvas em que se espreguiça antes de morrer num estuário a saber a sal e a peixe prata, desde as alturas de todos os Kilimanjaros. África é nome de peixe, doce como todas as lagoas do Panguila, bom como kakussos de todos os rios.

África é mukua, nome de fruta, nome de pássaro, katuiti, nome de bicho. Nome de pessoa, nome de terra, Xamissassa, nome de pedra grande onde se pisa o milho, arrastando as pancadas ao som interminável da lenga-lenga, enquanto a farinha alva se fabrica para a comida de logo à noite. A panela no chão, todos sentados em volta, dois dedos da mão respeitando as hierarquias e apontando àquele canto, a outra mão tentando segurar o escaldão e o peixe retirado de cima das brasas.

África é humanismo de Senghor nas matas do Senegal, dividido com Cesaire, partilhado com o mundo, sem direitos de autor e sem propósito de lucro. África é Cabinda, haja ou não Simulambuco, é Kwanza, N’dalatando, Kaxito, Kibala, Bailundo, Benguela, Huambo, Bié, Menongue, Ondgiva, Kunene. África é a extensa liberdade com que se escreve cada nome, sem regras e sem acordo ortográfico, cada um deles um frenético passado de dança, uma eminência de bassula. África é mais do que tudo isso, África é mãe. Mãe África!