5 de março de 2013

Capitalistas e conservadores


Dei à Suiça, pela primeira vez, em Basileia, numa plataforma da estação dos caminhos de ferro, era uma madrugada de dezembro e nevava. No cais deserto havia um vulto a alguns 200 metros, do qual me fui aproximando. Estava à minha espera. Tolhido de frio, acabado de chegar das praias da Ilha de Luanda, não consegui, mesmo assim, evitar o sorriso largo. Como conseguira um dasafortunado daqueles saber que eu chegaria naquele comboio em vez de chegar num avião proveniente de Zurique, mais de duas horas antes? A explicação confundiu-me, eu não sabia onde estava, mas estava num outro mundo a que não estava habituado.


Amanheci num quarto de hotel, de tronco nu, a espreitar a manhã da rua onde a neve se acumulava nos passeios. E nos telhados e até nos ramos despidos das árvores. Eu nunca vira neve, a neve em África é outra, e senti-me perante um postal ilustrado. Nos poucos dias que por ali andei, em trabalho, verifiquei que afinal o frio não era tanto e apenas se sentia nas ruas. Mesmo quando os termómetros já desciam a quinze graus negativos durante a noite. As pessoas eram atenciosas, orgulhosas do seu país – pudera! -, falavam todas inglês e perguntavam-me porque não usava eu o francês, à semelhança de todos os portugueses.

Em África eu nunca cheirei o dinheiro e muito poucas vezes lhe vi a cor, surrada pela passagem por milhentas mãos, as notas rasgadas, coladas com fita adesiva, volátil como a gasolina da Galp e como o rendimento dito social de inserção. Em Portugal – ou na Metrópole, que era a terminologia do regime! – ainda menos. Não conhecia nem as notas nem as moedas. Sendo Portugal uno e indivísivel, do Minho a Timor, como se sabe e como se viu, um escudo de Angola não valia, como vossa licença, merda nenhuma.

Nas ruas da Basileia, com os termómetros a marcarem zero graus ao meio dia, eu sentia o frio no tutano de todos os ossos. E cheirava-me a dinheiro por todos os cantos. Na ordem, no civismo, naquilo a que desde aí passei a chamar de consciência coletiva. E no entanto a Suiça é uma manta de retalhos a que chamam cantões, tem os passaportes com a designação impressa na capa em três línguas, cada cantão é tão independente em relação ao vizinho quase como em relação à grande Alemanhã, do outro lado do Reno, um rio da geografia da minha infância.

Mais tarde, um colega meu, suiço de nascimento e por ironia chamado Karl Marx, acrescentaria à minha admiração que nenhum automóvel avançaria desde que eu tivesse um pé na passadeira, que os comboios tinham carruagens de primeira classe mas que ele não conhecia, que as criancinhas iam para a escola e tinham desde logo a aprendizagem de três línguas, duas nacionais e uma estrangeira e que quando a neve se acumulava em frente às casas os moradores eram obrigados a espelhar sal, sem nenhum decreto que o impusesse. E que a Suiça, sendo um país neutro, de vez em quando e quando convinha, macaqueava um pouco essa neutralidade e era capitalista e conservador, para que não ficassem dúvidas. E que não tinha visitas de Estado, quem quisesse ir que fosse, ficasse o tempo que quisesse, pagasse as despesas e se fosse embora.

E como país conservador a confederação quase só centralizava em Berna o que dizia respeito às relações internacionais, era governado por um colégio de sete membros em que a presidência era rotativa e tinha o incorrígivel vício de levar a referendo, absolutamente vinculativo, tudo e mais alguma coisa. Desde a construção de auto-estradas à plantação de pinheiros de Natal. O suiço era, e continua a ser, chamado a participar na vida pública. Num país conservador o regime vivia numa simbiose de democracia representativa e participativa. Em Portugal a democracia é ferozmente representativa em que cada deputado se representa a si, à família e a um restrito círculo de amigos, a participação é tida por anarquia pura e simples, e só se viaja em primeira classe nos aviões e em automóveis de topo de gama. Perante a possibilidade de ter de viajar num Renault Clio, fica-se em terra, que a dignidade da função e dos desempregados assim o exige.

Surpreendente, ou nem por isso, foi a Suiça – país capitalista e conservador – ter decidido limitar as remunerações dos executivos das grandes empresas, por iniciativa – pasme-se! – de uma delas e ter submetido a questão a referendo, tendo a medida sido aprovada. E sem a intervenção do engenheiro Jardim Gonçalves e da sua pensão mínima!

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