27 de novembro de 2013

A democracia no fundo da gaveta

Há muitos anos atrás, no tempo em que os animais falavam e tinham apenas duas patas, não sei quem decidiu por si, para bem do nosso futuro coletivo, guardar o socialismo no fundo da gaveta, fechá-la à chave com uma fechadura à prova de qualquer violação – violação da fechadura, é melhor esclarecer! – e ir deitar a chave ao mar, a algumas dez milhas da costa e a alguns 5.000 metros de profundidade. De forma a que nem o Papa, direto mandatário de Deus nisto a que chamam planeta Terra, a pudesse encontrar, mesmo que para isso contratasse todos os aprendizes de espião, pagos pelo orçamento, e encomendasse todos os pareceres ao escritório do Dr. Miguel Júdice.


A democracia, que é, ao que se disse por aí, um regime do povo e para o povo, vai disputando cada vez mais o fundo da tal famigerada gaveta, cada vez mais fundo, cada vez mais trancada e à prova de violação – violação da fechadura, é melhor voltar a recordar! – e, de todo, inexpugnável. Ainda ontem! No seguimento ou não da aprovação na arena de São Bento de umas folhas de papel com palavras e números a que não sei quem, pretenciosamente, chamou orçamento, uma pequena parte do povo entendeu dirigir-se a quatro ministérios e falar ao respetivo ministro. Que, perante dados públicos conhecidos e intervenções televisivas à hora do telejornal, se presume que saibam falar, mesmo não dizendo coisas de jeito.

Tanto quanto sei, entraram pacificamente, não forçaram nada, não espancaram os vigilantes de serviço, não gritaram impropérios contra a honra das mães ou das mulheres dos ministros, não roubaram nem mesas nem cadeiras, não partiram coisa nenhuma. Pediram apenas que sua excelência ouvisse as suas razões, de gente vulgar, que tem de estar desempregada, não receber subsídios, de pagar renda de casa, eletricidade, água, saúde, ensino, alimentar e vestir os filhos. Foram ouvidos? Parece que não. Entregaram algum documento para que sua excelência o lesse e, pelo contínuo de serviço, lhes mandasse algum recado ou alguma palavra de conforto? Parece que também não.


Que fizeram hoje, em uníssono, como se fossem apenas um, as pardas excelências dos ministros? Que são, tanto quanto apregoa a democracia que mantêm refém no fundo da gaveta, representantes do povo soberano, dizem eles. Convocaram o povo, emitiram comunicados, pronunciaram-se na televisão, aplaudiram os intérpretes da casa dos segredos, prometeram uma palavra ou uma missa pela alma de D. Afonso Henriques? Não, nada disso! Representando o povo, usaram dessa condição e mandaram reforçar a segurança dos respetivos ministérios. Exatamente para isso, para se defenderem do povo que representam. Não vá este exceder-se nas carícias e nos afagos!

22 de novembro de 2013

Um pássaro de fogo

Um pássaro de fogo, magnífico como o porte altivo das cegonhas, voando desde o Ártico, batendo as asas sob o céu azul embaciado dos trópicos. Um sol de vulcão, escaldante e próximo, vermelho e branco, como o poema de Drummond, as cores da vida, a distância a que se perde o sonho e se estende a grande muralha, China acima. A linha do equador logo ali em baixo, enrolando-se nas ondas tépidas que adormecem nas areias finas, uma palmeira real que acena uma brisa quente, pressão atmosférica de setenta e seis centímetros de mercúrio. Torricelli, um nome para a ciência, o barómetro, um instrumento para o museu dos tempos.


Perco-me no castanho silencioso dos teus olhos, para lá do sorriso breve em que os encovas, sem conseguir chegar-te ao coração. Digo silêncio e há um rio sem margens que te escorre pela face, nem barcos nem cais de embarque. Cada minuto uma eternidade passada e distante, caravelas largando de Sagres porque fica mais perto o desconhecido, cores garridas de papagaios, cantos estridentes de aves que se não veem, florestas tão carregadas de verde que continuarão virgens, até ao abate clandestino de todos os desejos. Gente diferente, os olhos prenhes de uma curiosidade ansiosa, perguntando-se sobre o que de novo lhes trás o oceano. Gente feliz, sem as roupas que ignoram, sem as lágrimas que não vertem.


Cada ramo de palmeira é uma folha caída em que se derrete o pássaro, percorridos quase os noventa graus de latitude, à procura dos dedos esguios das mãos pequenas que deixaste perder na bruma dos dias descontínuos. O coração cansado sob as penas de que se cobrem asas e sentimentos, a esperança num azimute virado a sul, para além de todos os destinos e de toda a rosa dos ventos, sem pontos cardeais. O pássaro feito gotas cristalinas, água pura de nascente de montanha, nuvens brancas de pureza, amor sem pecado, só desejo, ponto de confluência de rios correndo para norte. Só sonho que se fará vida, só distância que se fará perto.

20 de novembro de 2013

Lua cheia de novembro

A rua! A noite escura, escura e fria. Um frio quieto e seco, sem nenhuma brisa nem folhas caídas esvoaçando pelo chão do outono. O vento ausente, uma visibilidade extensa, para além de tudo. Um céu sem nuvens, nem cirrus altos. Só um veludo macio e negro, uma abóbada completa, de oriente a ocidente. Um brilho no meio, o esplendor da lua cheia de novembro, parecendo perto, como se batesse à porta e esperasse que alguém viesse abrir.


Os teus cabelos curtos pousados sobre o horizonte próximo, escorrendo lentamente por entre as cores de outono que me enchem as mãos e o verde fresco que habita as margens das lagoas. Passam lentos, como se flutuassem no vácuo das experiências da física e aí ficassem, à espera que março os faça crescer-te pelos ombros, uma leve ondulação nas pontas, sorrindo à primavera.


A minha mão com todos os dedos esticados, o braço estendido, uma serena ansiedade circulando-me nas veias, à espera que a tua vença a distância a que nos aproximámos, entrelacemos os dedos e a ansiedade se aquiete. Seja um confortável calor morno a aconchegar-me o peito e as ideias sem rumo, um barco frágil entregue à incerteza de um mar cavado, a barra por vencer.

10 de novembro de 2013

Quantas lágrimas tem a noite?

Quantas lágrimas tem a noite, para além da madrugada e do céu sem estrelas? Por entre a inquietude do sono, todo o tempo me doeu o corpo e me chorou a alma. Até que se apagasse a luz dos candeeiros e a chuva da manhã tardia desenhasse as ruas e as esquinas, me sangrasse a alma e me chorassem os olhos, por entre o nevoeiro que ensombra este vazio de ter-te ausente e longe. Um choro certo, sem paragem nem interrupção, com a mesma ameaça amarela e verde com que pintam o mapa, como se fosse uma nova descoberta do Brasil, a borrasca a adivinhar-se no ventre destas nuvens escuras, a avisar que a chuva e as lágrimas são para continuar, tão longe como o acaso do sol pondo-se a oriente deste mar aberto e longo, como facas.


Ah, e todo o cais é saudade nenhuma. O cais é uma doca seca a que não aportam sonhos e de que não zarpam recordações, nem movimento, nem azáfama. Apenas destroços empilhados, as madeiras com caruncho, os metais pasto lento da ferrugem, nem silhuetas pairam no horizonte, longe ou perto. Pessoa foi marinheiro em terra, aprendendo os termos e a arte na sua peregrinação pelas tabernas da cidade, emborcando copos de vinho e cálices de aguardente, até chegar solene e morto, o fígado feito em pedaços, ao lugar que merece no Mosteiro dos Jerónimos, quase em flagrante delitro, uma carta para Ofélia a despontar-lhe do bolso do casaco, um amor de deve e haver. A roda do leme sempre segura como se fosse um copo, precioso pelo conteúdo, frágil pelos cacos espalhados no convés.


A Ode Marítima é uma viagem de circum-navegação sem rumo certo, sem os acidentes e as perdas com que Magalhães teve de confrontar-se, sem bússolas nem computadores, nem semana inglesa. Nem Villaret nem Viegas se atreveram a lê-la de um fôlego, inteira e completa, dar-lhe o destino que a fizesse sair para além da barra, cruzar os mares, aguentar os vendavais das noites sem estrelas e sem norte, até depositar o resto dos destroços numa praia desconhecida, habitada por coqueiros e águas cálidas, só gente feliz sem lágrimas. Que vidas se escrevem nos poemas, que esperanças se mergulham  em cada verso, que dia inteiro cabe em cada livro?