10 de novembro de 2013

Quantas lágrimas tem a noite?

Quantas lágrimas tem a noite, para além da madrugada e do céu sem estrelas? Por entre a inquietude do sono, todo o tempo me doeu o corpo e me chorou a alma. Até que se apagasse a luz dos candeeiros e a chuva da manhã tardia desenhasse as ruas e as esquinas, me sangrasse a alma e me chorassem os olhos, por entre o nevoeiro que ensombra este vazio de ter-te ausente e longe. Um choro certo, sem paragem nem interrupção, com a mesma ameaça amarela e verde com que pintam o mapa, como se fosse uma nova descoberta do Brasil, a borrasca a adivinhar-se no ventre destas nuvens escuras, a avisar que a chuva e as lágrimas são para continuar, tão longe como o acaso do sol pondo-se a oriente deste mar aberto e longo, como facas.


Ah, e todo o cais é saudade nenhuma. O cais é uma doca seca a que não aportam sonhos e de que não zarpam recordações, nem movimento, nem azáfama. Apenas destroços empilhados, as madeiras com caruncho, os metais pasto lento da ferrugem, nem silhuetas pairam no horizonte, longe ou perto. Pessoa foi marinheiro em terra, aprendendo os termos e a arte na sua peregrinação pelas tabernas da cidade, emborcando copos de vinho e cálices de aguardente, até chegar solene e morto, o fígado feito em pedaços, ao lugar que merece no Mosteiro dos Jerónimos, quase em flagrante delitro, uma carta para Ofélia a despontar-lhe do bolso do casaco, um amor de deve e haver. A roda do leme sempre segura como se fosse um copo, precioso pelo conteúdo, frágil pelos cacos espalhados no convés.


A Ode Marítima é uma viagem de circum-navegação sem rumo certo, sem os acidentes e as perdas com que Magalhães teve de confrontar-se, sem bússolas nem computadores, nem semana inglesa. Nem Villaret nem Viegas se atreveram a lê-la de um fôlego, inteira e completa, dar-lhe o destino que a fizesse sair para além da barra, cruzar os mares, aguentar os vendavais das noites sem estrelas e sem norte, até depositar o resto dos destroços numa praia desconhecida, habitada por coqueiros e águas cálidas, só gente feliz sem lágrimas. Que vidas se escrevem nos poemas, que esperanças se mergulham  em cada verso, que dia inteiro cabe em cada livro?

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