A faca não corta o fogo
A
faca de Herberto Hélder não corta o fogo nem a morte sem mestre que não chegou
a pousar nas estantes das livrarias, mas que se pode encontrar na feira da Vandoma,
aos sábados de madrugada, na banca onde o espírito de Eugénio de Andrade a
apregoa, em conjunto com a gata que lhe fugiu do poema e desistiu da intenção
inicial de atravessar o rio Douro a nado para ir às provas de vinho fino nas
caves da margem esquerda, e permanece em paradeiro incerto.
A
faca da Deolinda serradora não corta o tronco do pinheiro, mesmo que se lhe
tenha extraído toda a resina, com o fio rombo à falta de amolador, a quem
roubaram a bicicleta e o apito, apesar da serradura espalhada pelo chão. Mas é óptima
para cortar água, vento e sombras de paredes a que se acolhem cães vadios e
sonhos que não couberam nos manuais de António Gedeão, enquanto este escrevia
poemas químicos e orgânicos, só hidrocarbonetos e vapores de petróleo a
infestarem o ar puro que respiramos, politicamente corretos nas palavras
patrióticas dos deputados ignorantes e inúteis.
Por mim, reservei ontem um voo de baixo custo para
Zurique, a caminho de Basileia, a tempo de apanhar o eléctrico em Claraplatz e
chegar ao outro lado do Reno com os barcos descendo a corrente, tranquilamente navegando
para Roterdão. E apanhar as bancas do mercado em Marktplatz cheias de flores
exóticas e canivetes suíços, sem ferrugem na lâmina e uma cruz devota no cabo
vermelho, à espera de uso. Capaz de degolar o voo plano de frangos virgens, de pescoço
careca e passo inseguro. E ainda políticos na reforma, apoiados em bengalas,
gozando os ares marítimos de Estrasburgo e o saldo bancário de contas em paraísos fiscais nas
ilhas das Caraíbas e no enclave da Madeira.
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