Sobretudo de girassonde
Lá
está ele, o morto, espartilhado dentro de um sobretudo de pinho tratado,
cheirando a verniz e brilhando de castanho escuro, como se fosse de pura
caxemira inglesa produzida nas fábricas dos arredores de Manchester. Aperaltaram-no
para a função e para a viagem, última e demorada, de alguns quinhentos metros,
com uma missa pelo meio e as lágrimas fartas das carpideiras importadas das
terras de África. Onde, apesar do calor tropical, os sobretudos têm a nobreza
exótica do girassonde e incorporada a resistência perpétua ao caruncho e a
quaisquer outras bichezas da madeira e de outros materiais.
Calça
sapatos novos de verniz, com a sola virgem e as biqueiras a apertarem-lhe os
dedos e os joanetes, que já não sente, como não sente mais nada. Gente previdente
teria tido o cuidado básico de lhe aparar as unhas e de evitar que as mesmas
pudessem romper o algodão preto das meias novas que lhe calçaram para o repouso
eterno, esticado e hirto. Vestiram-lhe o melhor fato, dos dois que tinha para
as cerimónias de despedida a que, de quando em vez, era chamado e para os
baptizados raros, das poucas criancinhas de quem já não conhecia os pais,
separados pelo rio de águas turvas e revoltas que persiste em correr para a
nascente, Mondego e Serra da Estrela. A Figueira da Foz reservada para os
espectáculos e para os jogos de casino, a praia para o sol fugidio e ventoso de
verão, sem acasalamentos.
O
pescoço pendurado no nó torto da única gravata preta que se escondia nos
recantos sempre desconhecidos do roupeiro, de cuja desarrumação resultou, roída
pela traça e amarrotada pelo tempo, como se fosse vida que ainda sobrasse e que
já não sobra. Uma camisa branca que lhe deve ter servido para a comunhão e para
o casamento, duas fatalidades e um só destino, de colarinho apertado e com falta
de botões nos punhos gastos, uma camisola interior de meia manga, cardada por
dentro, por causa dos rigores da invernia e do excesso de humidade que sempre
resulta das noites longas de janeiro que se entranham terra dentro.
Por
baixo a roupa tradicional e necessária para quem viaja para Neptuno, agora que
Plutão foi saneado da colecção oficial de planetas, onde se imagina um frio de
rachar, mesmo que seja agosto nas planícies da Andaluzia. Umas cuecas com
carcela, um botão a meio, cuidadosamente deixado aberto não vá haver qualquer
aperto a meio do caminho e seja preciso abrigar-se atrás de qualquer moita, à
conta de qualquer imprevista e ainda humana necessidade. E as ceroulas, de um
branco imaculado, depois da cora de três dias ao sol, cardadas por dentro e com
atilhos de apertar nos tornozelos. Pronto para a partida, sem bilhete de
regresso e sem greve dos comboios.
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