29 de maio de 2015

Todo o teu corpo

Todo o teu corpo, envolto no crepe translúcido da ternura da manhã, uma montanha toda coberta de verde, vales suaves e montes eretos, oferecendo-se ao sol e à escalada, exposto à flor de carícias e de beijos, próximo, muito próximo, à distância breve do perfume que se te liberta dos cabelos. E o sol espreitando ainda abaixo do horizonte, seguindo de perto a alvorada, pronto a erguer-se a oriente, saltando o fio fino e frágil que nos separa do dia claro e da descoberta das horas entrando pela janela.

Os lençóis desalinhados sobre a cama, os raios de sol moldando-se à forma das frestas da janela, acariciando-te o pé pequeno, exposto à luz, como se a esperasse. Sinto que desperto lentamente sobre a esperança suave do teu peito, chega-me aos ouvidos a tua respiração tão serena como o cheiro breve das flores de tília, o teu coração a bater compassado e certo sob a palma da minha mão que esboça uma carícia hesitante, nem sonhos nem vestes de permeio.


Tomo o teu pé entre as minhas mãos, passo um polegar levemente sobre o teu dedo pequenino, quase me parece que estremeces, olho para os lados e nem a luz nem o sol trouxeram consigo o sapatinho de cristal que gostaria de calçar-te. Adivinhas-me os pensamentos, esboças um sorriso, estendes-te por entre os lençóis revoltos, abres os olhos devagar, és toda um beijo e um abraço que me envolvem e que saúdam o novo dia e a descoberta!

22 de maio de 2015

O paraíso num abraço

Com mãos leves e macias, nesta manhã de primavera, percorro-te o corpo perfumado, lentamente, como o sol claro, a oriente, sobe do horizonte desde a alvorada. Há um perfume diferente em cada dia a que o corpo se te entrega, nunca é igual o movimento das copas altas dos plátanos, em função da brisa que as acaricia, rosa-dos-ventos, norte hoje, amanhã sul, sempre tempo para mudar de rumo. Nunca é igual o voo plano a que se dedicam as gaivotas, dançando numa geometria variável sobre o mar chão que quase não parece líquido nem oceano.

É a sempre diferença do perfume que te amacia a pele, a magia e o fascínio do teu corpo inteiro, ilha desnuda flutuando suavemente ao sabor das águas tépidas, oferecendo-se ao doce prazer da descoberta, dando às areias da praia deserta, os lábios túmidos, a boca a saber a sal e a frescura, quatro mãos e um só destino, sempre um bom porto que nos espera à chegada. Sem o bulício de navios e marinheiros, cargas e descargas, cabos que rangem, guindastes que volteiam.

Apenas e só todo o infinito que é o carinho sem medida deste abraço apertado, que nos leva para além do que é humano e nos desenha os contornos do paraíso. Onde repousamos!


16 de maio de 2015

A cidade nasce-te dos pés

Com a lua nova perdida na noite escura, a cidade sem nome nasce-te dos pés, liberta-se da muralha, escorre pela encosta, salta a avenida e projecta-se no espelho perfeito das águas quietas da baía, onde dormem os peixes e os sonhos. Não digas nada, dá-me a tua mão e a força do teu silêncio. Deixa que te adivinhe todas as palavras e todos os gestos, as luzinhas longínquas dos navios que se aproximam do porto, segredando-nos todos os anseios de futuro, a certeza do teu olhar inquieto percorrendo o horizonte.

A noite tropical, nuvens baixas tocando a linha marítima onde os navios se sustentam, mais de trinta graus, a humildade a escorrer-nos pelas costas, o linho da camisa encharcado, a lua já a caminho do quarto crescente. No suor que te enche a palma da mão um mundo inteiro de ansiedade, o sangue que te circula por veias e artérias, o desejo quente de um abraço que te desnude para o fresco doce da madrugada onde as nossas mãos chegarão de dedos entrelaçados e trementes.


Vamos atrás da noite e dos seus mistérios, que inundam de uma brisa fresca as areias da praia, sem murmúrio nem ruído. Nem ondas, só o silêncio da espuma branca que te chega aos pés de onde a cidade nasce desde o cume da colina. Falta ao céu o azul e as cores que enchem a superfície das águas, sobrando as mãos entrelaçadas e o escuro que te desnuda e te refresca quando já cheira a madrugada. Não precisámos de palavras nem de gestos para que ambos fôssemos um só abraço e um só destino, com a alvorada a anunciar-se a oriente. Porque o sol nasce sempre a oriente!

15 de maio de 2015

O sol brilhando-te na boca

Hoje, sexta-feira, quando o sol acolhe sob o seu manto um vento fresco, a empurrar o fim de semana, vejo-te surgir como uma aparição, por detrás dos troncos majestosos dos plátanos, o olhar sereno estendendo-me um abraço apertado e terno, as cores da primavera desalinhando-te os cabelos soltos, uma papoila vermelha fazendo-te os lábios apetitosos, incandescentes e sensuais, o sol brilhando-te na boca.

Não é miragem o tempo que nunca mais leva à beira mar, nem ao teu corpo franzino, atrás do qual se esconde um coração que bate seguro e certo, com a cadência rigorosa de um relógio suíço. Deixa que me chegue às narinas a fragrância única da tua pele, que nenhum perfume foi ainda capaz de imitar, e que a atmosfera que te transporta, transborde do calor que sinto na palma da tua mão e me paralisa a coluna, sempre que a distância nos aproxima.

Diz uma palavra inteira, a que não seja preciso contar as sílabas, seja ela qual for, comece por que letra começar, desde que nos traga a maresia e o amor dos gestos longos, que nos ensina um novo caminho em cada momento que passa. Porque o amor é uma peregrinação sem caminho e sem destino certos, onde o que realmente importa é descobrir o rumo que leva à chegada. E descobrir o sítio e o momento da chegada!


9 de maio de 2015

Hoje fiquei muito contente

Quando soube, pela televisão, que se comemorava o dia da Europa. Antigamente ensinaram-me na escola que a Europa era um continente – que agora é um supermercado onde se vendem frutas e legumes – e eu pensava que ele tinha todos os dias, como a Ásia, a América, a África e o meu amigo de infância, José Sapalo, umbundo dos sete costados, falecido há muitos anos, afogado em cachipembe de fabrico ilegal.

Depois eu, mesmo não o parecendo, estou sempre pronto para comemorar seja o que for, de preferência de copo na mão e espírito patriótico. E tanto assim é que já tenho ali a um canto uma bandeira do Benfica, outra do Porto e outra do Sporting para celebrar as classificações que obtiverem no campeonato nacional da bola. E não passo por Coimbra sem fazer uma pausa, curvar-me frente ao túmulo de Afonso Henriques e dizer-lhe apenas, baixinho e em surdina que, se calhar, não teria sido preciso bater na mãe para ser rei. Teria bastado mandar ao Papa da altura a contribuição que o mesmo exigisse e umas garrafitas de Porto vintage, se já as houvesse.

Depois fiquei “espantadérrimo” com as perguntas feitas na rua e que me confirmaram que a malta sabe da Europa tanto ou mais do que de matemática ou português e até mesmo tanto como os professores que chumbaram na avaliação de há dias atrás. A Europa, como se sabe, é para nós o abono de família que o malogrado Eusébio era para os colegas de equipa. Os salários baixam, o desemprego aumenta, o senhor dos passos diz que a competitividade progride, as portas rangem nos gonzos, o agiota aumenta a taxa de juro e a senhora Merkel não precisa de invadir a Polónia como fez um bastardo de um alemão nascido na Áustria, para arrecadar os lucros.


De resto parece que que tudo começou com uma declaração de um tal Robert Schuman, feita a 9 de maio de 1950, mas não disseram nem perguntaram quem o mesmo tinha sido. Mas, pelo nome, deve ser um qualquer jovem avançado por cuja contratação se degladiam os nossos competentes dirigentes desportivos, na mira de amanhã o venderem, como presunto, ao Real de Madrid ou ao Maschester United. Daí por diante aquilo a que já abusivamente se chama Europa foi sendo fabricado nos gabinetes dourados dos políticos, sem perguntar nada a ninguém e sem se preocuparem com isso. Os sábios não precisam nem de conselhos nem de consultas…

3 de maio de 2015

Dia da Mãe

Como se alguém, alguma instituição, algum parlamento ou algum governo, mesmo falido e padecendo de doença incurável, pudesse escolher um mês do ano e seleccionar um dia, mesmo que fosse domingo, com missa e procissão do adeus no santuário de Fátima, tudo lenços de linho imaculadamente branco, acenando a quem possa exorcizar todos os seus males, e reduzir a condição de Mãe a essa circunstância. Por mais e maiores velas que se acendessem, mais desumanas voltas de joelhos se dessem à capelinha das Aparições, maior fosse a desumanidade e a hipocrisia postas no invento, mais transbordasse a multidão que se acotovelasse no recinto, a Mãe tem a dimensão mágica de três letras que não cabe em nenhum muro, em nenhum espaço, em nenhum mundo, em nenhum sistema solar. Maior que a imaginação!

É tão fora de medida todo esse teu tamanho, que te perdi de véspera, ainda antes de partires, destroço final de uma vida de sofrimento e de sensatez, só fios, tubos, luzinhas piscando, aparelhos emitindo sinais sonoros e este grito interminável de silêncio que me foi caindo pela face sem expressão e sem esperança. A revolta mais inteira, a escuridão da agonia em que cada dia é uma eternidade de sofrimento que vai passando com a regularidade mecânica por que se regem os calendários. Perdi-te de vez, quando já nada restava da tua presença, setembro caminhava para o fim do verão e, humilde como foste sempre, morreste-me sem esperar que voltasse para ainda olhar uma última vez  para o que já não eras, tão dentro do meu peito, tão perdida nas distâncias do meu infinito.


Com a tua partida, morri-me contigo, perdi tudo o que tinha e que era tanto que nem eu o imaginava e nunca conseguirei quantificá-lo. E o tudo que tinha eras só tu, velha, pequena e frágil, enchendo-me o universo. Sem a tua protecção, fiquei só, ao abandono, vulnerável, perdido, reduzido a resto que não cabe no mais abjecto depósito de lixo, entregue ao frio dos dias intermináveis e sinuosos ainda por passar. Chorarias comigo as lágrimas de sangue em que agonizo e não serias capaz de acreditar no pouco que, felizmente, a tua vista cansada ainda te deixaria ver. Falta-me o calor que os sem abrigo vão buscar ao álcool e aos cartões velhos com que se protegem no granito dos portais. E a tua testa fria, em que pousei a palma dorida da minha mão, é o único calor que me acompanha, não sei como nem sei até quando. Faltas-me mais, faltas-me tudo!