30 de outubro de 2015

Vou por aí como sempre

Vou por aí como sempre, isolado e só, arrastando os pés pela beira de nenhum caminho, sob a sombra protectora de nenhuma árvore. Não procuro nenhum horizonte, não persigo nenhum destino. Sem pessoas, amigos ou afectos em volta, um céu carregado de nuvens escuras de mentira e de hipocrisia, atolando-me no lodo da perversidade.

Sempre estive disponível quando o julguei útil, acabei sendo usado sem nenhum pudor e descartado como tudo o que se usa uma vez, quando é preciso, e se deita fora, para o cesto do lixo e do desprezo ostensivo. De facto não se deve esperar a regeneração de quem não presta nem a amizade de quem se move por interesses inconfessáveis.


Fica o deserto e a consciência da ingenuidade com que acredito na falsidade de um sorriso e no garrote de um abraço. Que, mesmo tarde, possam servir para memória futura!

18 de outubro de 2015

Aniversário - 104 anos

Acordei hoje com esta permanente sensação de que nada é diferente de ontem, com a enxerga da vida a levantar-se comigo e uma chuva oblíqua de vento a penetrar-me no corpo. O tempo não tem medida, nem dias nem anos, e é só distância a percorrer, guiado pela tua mão pelo carreiro que corre encosta acima. De resto é apenas a data do teu aniversário, contigo atravessando a via láctea, cruzando o caminho das estrelas e o infinito. Sempre presente!

13 de outubro de 2015

O vento ao sol

O vento ao sol, gemendo alto nas copas do outono, o rio lá em baixo, no fundo do leito escavado entre as margens de granito, contorcendo-se com as dores do parto a três quilómetros da foz, onde vai parir gaivotas em voo plano e barcos prenhes de petróleo, apontados às bombas de abastecimento e às cotações das bolsas de valores, a azáfama habitual de chegada próxima, a crise instalada para além do cais, intemporal e sempre.

Come chocolates pequena, come chocolates, enquanto Pessoa encarna Álvaro de Campos, uma forma de promoção social, engenheiro naval em vez de amanuense, a escrever poemas no português escorreito que aprendeu nas escolas de Durban, de pé, encostado ao balcão das tabernas do Cais do Sodré, o fígado desfeito, a caminho do hospital dos franceses, tresandando a tabaco e a bagaço, os Jerónimos à espera, o governo apostado em torná-lo herói nacional, sóbrio e lúcido, e em erigir-lhe uma estátua no centro do largo.

É, se eu tivesse casado com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz, se ainda houvesse lavadeiras que tivessem filhas e tu fosses uma delas, procurando casamento, hoje um, amanhã outro, a roupa esfregada à mão, aquele cheirinho antigo às barras de sabão, nenhum risco de haver filhos, a menopausa transposta há mais de uma dúzia de anos, só mesmo pelo prazer que se alcança quando se sente o perfume fresco das maçãs camoesas a entrar-nos pelas narinas, até ao fundo dos pulmões, o paraíso na palma da tua mão.


11 de outubro de 2015

Domingo, 11 de outubro de 2015

O verão foi-se de viagem, há muito atravessou Gibraltar, a caminho do deserto africano. Chegou entretanto esta manhã de domingo, triste e nevoenta como o teu percurso, a tentar, como tu, abraçar-se aos troncos sem idade dos plátanos da praça, onde vai morrendo um vento fraco que lhes amarelece as folhas e as faz tombar, perdida a alegria verde da primavera que as trouxe. Então tudo eram só promessas de bom tempo, o perfume das rosas de antigamente, o sol parado no solstício para que nunca mais se chegasse ao equinócio, a caminho do inverno.

Todas as horas eram só uma presença tua, constante e ininterrupta, sem nenhuma ausência, persistente na conveniência, insistente no propósito, determinada na acção. Todas as palavras enfeitadas com a sensualidade dos poemas de Neruda, escondendo a falta de melodia e o ritmo que se extingue no teu puro prazer das descobertas, completadas todas as viagens de circum-navegação e encontrados ao acaso todos os brasis, duas lágrimas escorrendo-te pela face, sem sabor a sal ou a sentimento, água destilada.


Depois a aparente doçura das palavras tornou-se num som agudo, estridente, quase grito como vento desabrido empurrando a chuva, do chuvisco se fez dilúvio, da maré vazia se fez tempestade, ondas de sete metros galgando o molhe, da verdade se fez o caminho da mentira, das promessas se fez desgraça. Da ilusória ternura do olhar se fizeram gumes letais e dos teus dedos não sobraram mais do que punhais cravados pelas costas. Ao sabor das novas descobertas que serão abandonadas na sarjeta, como todas antes.

1 de outubro de 2015

Pois, aqui estou eu

Pois, aqui estou eu tal como resultei de todos os invernos, sozinho, sentado ao canto de um café deserto, a companhia de um jornal aberto sobre a mesa e de uma chávena, o olhar vazio perdido no nevoeiro breve que atravessa a praça, todo o outubro pela frente. Dói-me toda a distância inútil dos meus dias, todos os afectos espalhados pelas ruas, na procura ansiosa de um gesto carinhoso, todas as esperanças que, como sonhos, sempre moraram no tom esverdeado e fundo dos meus olhos tristes. Por ironia, também em outubro houve um sol de estio varrendo os terrenos já ceifados dos trigais, o grão recolhido das eiras acautelando o efeito das chuvas de outono, o saltinho inquieto dos pardais procurando uma migalha.


Na torre da igreja restava só o ninho desabitado das cegonhas, ao abandono, já aguardando pelo ano que há-de vir. Entretanto já as crias tinham adquirido asas e destino, escapando-se do frio antes que fosse tarde e o calor lhes ficasse a maior distância do que o voo. No interior do templo a altura desmedida do tecto trazia ao ambiente a frescura das manhãs de primavera e reduzia-te àquela pequena dimensão, isolada e só, em que te perdes, o olhar inquieto desenhando o trajecto irregular do voo nervoso das andorinhas. Sem palavras e sem gestos, o abraço apertado em que nos unimos, o coração que te senti bater a um ritmo sereno e certo, duas lágrimas salgadas que te desceram pela face e que morreram no silêncio da ponta dos meus dedos. A mão e o braço que te pousei sobre o ombro, mais do que o conforto e o carinho, certeza do apoio singelo que te dava.