22 de agosto de 2016

O poema não desce pelas encostas das nuvens

O poema não desce pelas encostas das nuvens, escorregando pelas cores do arco-íris, não é cristal fino de granizo em noite enluarada de agosto, não é visão de sereia em dia de mar sereno sem ventos de levante. Não é rima certa e musical, métrica exacta, quadratura do círculo, verso sobre verso, como tijolos de que se ergue uma parede, catorze versos contados pelos dedos, uma régua de cálculo que se mete de novo no bolso da camisa, “erros meus, má fortuna, amor ardente”(*), glória ou sofrimento, a vila de Constância e o abraço definitivo de dois rios a caminho do oceano. O poema, mais do que forma, calcário ou granito, pedra sobre pedra, é conteúdo, é substância, são todos os sentidos à flor da pele, todas as palavras de corpo inteiro e completo.

O poema é uma ideia breve, uma frase curta anotada à pressa numa folha de jornal, uma junção laboriosa de vocábulos, dois cadeados presos a uma das pontes sobre o Sena, testemunho do amor eterno das águas que, de mão dada, correm para o mar. O poema é o grito, a voz solta da garganta, a boca de coração aberto, a pele arrepiada, um calafrio polar descendo pela espinha, a engelhar um papel de circunstância que serve de memória. É sonho, é vida, flor abrindo como papoila na primavera, fruto amadurecido apanhado na época das colheitas, o pão quente para as noites longas do inverno, o calor da lareira atravessando-nos a alma até à chegada das manhãs frias, o movimento perpétuo, o “vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima”(**).

(*) – Luiz Vaz de Camões, Sonetos.
(**) – Fernando Pessoa, heterónimo Álvaro de Campos.

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