30 de outubro de 2016

Ano comum

Olha Joaquim, quando escreves “Ano comum” deixas-me o calendário vazio de tempo. Como se não houvesse nem semanas nem meses e eu ficasse sozinho de todo, para sempre. Resta-me apenas um às vezes derradeiro dia de Fevereiro, soltando-se de uma memória doce e remota, libertando-se-me do peito curvado, como um frágil sopro de vida. E todos os anos se me enchem os olhos de um raio de sol, redondo e bissexto de espera. Vagueio por aí, sem rumo nem destino, à procura do espaço que sobre das palavras que pintaste pelos dias todos, um a um. Mas não venço nem o primeiro lanço de escadas, nem tenho corrimão a que me apoie ou patamar onde descanse para a frescura lívida da manhã. E fica o poema adiado!


Porque cada linha que escreves é um rio que salta das páginas de um livro e que preenche toda a hidrografia da paisagem. Sem me deixar margens onde possam crescer os choupos, à sombra dos quais, com persistência, eu espreite a luz. E aguarde pela floração do verso que suba pelos troncos e se ramifique por todos os ramos da copa. Que haja pássaros que ali construam os ninhos, onde nasça mais vida a cada primavera que chegue. Correndo pelo verde dos campos e erguendo-se com a corola vermelha das papoilas, esvoaçando ao vento que sopra de levante.

24 de outubro de 2016

Vejo-te transparente

Vejo-te transparente pelas sombras vermelhas da tarde. Com o olhar atravessando a transparência da tua pele, eu vejo o mar. As pessoas caminhando na praia, a cor morena da areia agarrada ao peito dos teus pés pequenos. E também vejo o sol. O sol a perder-se pela boca aberta dos porões dos navios, que esperam pela subida da maré para seguir viagem. Vejo o ritmo certo com que te chega aos lábios o aroma fresco do coração. O sangue carregado de vida, saindo-te das aurículas, irrigando-te os passos, brilhando-te no olhar.



Há um ribeiro que te corre nas mãos abertas, a água límpida com reflexos verdes dos nenúfares que te florescem por entre os dedos. Um verde único, que nunca se viu nas noites de lua cheia. Que explode à hora do crepúsculo, quando é mais rápido o voo dos pássaros e mais lenta a velocidade da luz. Quando a noite se anuncia transparente, como os cabelos soltos que te trazem o abraço apertado do horizonte e o horizonte morre devagar no conforto fatal do teu peito. E eu, delicadamente, te ponho os braços à volta do pescoço e te sinto o beijo ardente sob o cor-de-rosa do batom.

20 de outubro de 2016

Difícil é pintar as cores do vento

Difícil é pintar as cores do vento nos telhados do sono. Acordar na madrugada de uma noite longa de inverno, com um cesto de frutas de Agosto no regaço. Apanhar o voo colorido dos peixes nas águas transparentes dos recifes de coral. E sentir a distância a que dormes, na medida imensa de uma gotícula de orvalho que te repousa no olhar. O resto são folhas secas, flutuando no vácuo, libertas da atracção fatal da gravidade. Um voo que ultrapassa os muros que limitam as fronteiras da galáxia. E que nos trazem de volta aquele sol breve que se pendura no branco caiado das paredes.



Difícil é por um rio à porta de casa, correndo sob a luz mortiça do candeeiro que um diligente engenheiro camarário plantou na berma da rua. Como de fosse uma amendoeira em flor, a engravidar de frutos e de música suave nas noites rápidas de verão. E por ele navegassem, contra a corrente, todos os barcos sem lugar no cais, de mastros partidos e velas rotas, sem ninguém ao leme. A carga solta, à deriva pelo espaço alagado do convés, as mesmas cores do vento caindo das escarpas de pedra, donas do leito e das águas que não são mais do que um nevoeiro silencioso e denso.

18 de outubro de 2016

105 anos

Faz hoje 105 anos que nasceste, minha Mãe. Percorro o meu itinerário de memórias e, como é meu hábito, não deixarei nada ao acaso. Não saberás de nada mas irei aparecer-te, a meio da manhã, ao encontro do teu sorriso espantado e feliz. Com um pequeno raminho de três orquídeas cor-de-rosa, a cor morna a que sempre me soube a ternura doce do teu colo. Um bolo onde quererei acesas todas as velas, e riremos com as dificuldades em consegui-lo e tu, em apagá-las. Mas hás-de conseguir, como sempre conseguiste. E gostarás das orquídeas!


17 de outubro de 2016

Erradicação da pobreza

As bigornas, as fornalhas cheias de carvão em brasa, alinhadas nas caixas fortes dos bancos. Fabricando moedas de euro para a erradicação da pobreza. E para a distribuição de dividendos nos corpetes das senhoras de meia-idade, a sair dos salões dos cabeleireiros. Da combustão não restando cinzas, mas papel branco para o decreto que levará o pão e a felicidade às famintas e infelizes crianças de África. A fome a cair de morta, feita em pedaços, pelas escadarias dos ministérios, sucumbindo aos golpes fatais das canetas hábeis e sábias dos ministros e seus sanchos pança. Às portas, batalhões armados até aos dentes, protegendo a fome do assalto, tão cobiçada ela anda no arroto prostituído dos donos do carvão para as brasas. E dos fabricantes das fornalhas e bigornas, para o incêndio dos telhados de colmo que a abrigam do relento.


13 de outubro de 2016

Amanhecer é sentir chegar a tua voz

Amanhecer é sentir chegar a tua voz estendida, macia como um suspiro, quando o dia ainda não é mais do que um prenúncio. Sentir que uma saudação simples vai criando abertas num céu coberto. Ver que há raios de sol com a força suficiente para invadir a penumbra que alimenta este relógio que me desperta. Espreguiçar-me sob o aconchego confortável dos lençóis, o aroma morno do teu corpo enchendo-me as narinas, a tua presença física convidando à madrugada e as mãos cheias de ternura, alisando-te a luz na frescura dos cabelos.



Tu bem sabes os caminhos que nos abre a noite, na solidão do sono, e o destino a que eles levam, no segredo discreto do teu peito. O compasso quaternário a que respiras, como uma canção suave que te sobe do coração, com o perfume de flor primaveril. O mar certo que te bate no pulso, como se este fosse toda a extensão de um círculo máximo, toda a geografia de um ano bissexto. Cada dia em chamas, sem memória de invernos ou de rios saltando do cume das montanhas.

8 de outubro de 2016

Circunavegação

Acordo a meio da noite, quando é mais escuro o sono e distante a cintilação das estrelas. Estão calmas as águas e tranquilo o desconhecido rumo que levamos, toda a nau rangendo ao ritmo a que lhe balança o gume da quilha. Com promessas convictas de terra a estibordo, como se dali se ouvisse o voo colorido dos pássaros e se adivinhasse o prenúncio da madrugada, como um resto de restolho sobre as areias das praias e os silêncios da história.



A circunavegação perfeita, à volta da geografia inteira do teu corpo, como península sem istmo. Com uma escala que transforme em água fresca o sal ardente e grosso que te cristaliza no céu-da-boca. E que seja descanso o fogo que se ateia no cume erecto dos teus seios, a queimar-me as pontas espigadas dos cabelos e o horizonte marinho e próximo da paisagem.

4 de outubro de 2016

Um cheiro morno a sol e a montanha

Um cheiro morno a sol e a montanha, e a frescura do teu sorriso, quando sonhas. Uma luz ainda pouca, atravessando as frestas da madrugada, o teu sono doce como mel, emergindo da colmeia, todo o enxame posto em repouso. A tua voz macia a escorrer-me por entre os dedos, o fresco da manhã de outono encharcando o piso húmido do terraço e um sussurro leve soando-me como uma canção que me espreguiça o corpo. Como me parece distante o dia e próximo o teu corpo inteiro, desabrochando na brancura enrugada dos lençóis.


Cada ruga, um verso por escrever, todo o poema explodindo na epiderme como uma alergia de primavera, procurando o verão no fundo dos poros. Um grito com sabor a amendoeiras em flor, o vestido de noiva arrastando pelo chão, a caminho do cais deserto onde o silêncio é de metais. E a música chega longínqua e suave como a aurora.