28 de junho de 2017

Portugal é este restito de país

Portugal é este restito de país, a cair do Cabo de Sagres abaixo. Promontório rochoso que tolheu a marcha a tantos povos que atravessaram a península. Quando ali se lhes acabou a terra e o caminho para prosseguirem. Não houve melhor solução do que espalharem-se pelas praias, de barlavento a sotavento, esperando que não ventasse de levante. Fugindo à planície alentejana, onde o sol abrasa e escasseia a sombra protectora do chaparro. Ou ficando pelas serranias de onde descem rios e pelo meio das formações graníticas, para lá dos montes.

Tantos anos ajudaram a descobrir mais caminhos, a chegar a sítios que se não sabia que existiam, a ter mais olhos que barriga. A ser invadido, a depender de terceiros para se defender, a entregar-.se na mão de iluminados. Sem nunca ser capaz de se governar ou, sequer, de deixar que alguém, honesto, o fizesse por si. Com o tempo, e bem, foi desprezando governos e políticos: não são flores que se cheirem, personagens centenárias da cáustica ironia queirosiana.



Depois, de repente, há a tragédia em que tudo arde e os políticos se ocupam a discutir a qualidade dos guardanapos e a assinatura do cozinheiro. E o povo anónimo, o que encheu um pavilhão que carrega uma vergonha e o outro, a grandessíssima maioria, que envelhece à sombra da miséria e do desemprego, junta-se como por magia e manifesta-se solidário. Sempre foi assim. Sempre houve mais a esperar de quem tem pouco ou não tem nada. Há um frémito que me arrefece a medula e me paralisa os movimentos. E, por uma vez, sei por que razão este restito de país ainda, de todo, não caiu de Sagres abaixo!

23 de junho de 2017

Real academia

Nesta vasta e erudita academia de iletrados
Há mais inspirados poetas que leitores
Há perfeitos sonetos mal acabados
E há até curiosos e universitários doutores

Publicam-se em redondilha quadras soltas
Escrevem-se livros com sentir e mais mensagem
Aos dicionários dão-se voltas e mais voltas
Na árdua busca da mais folclórica linguagem

Alguns versos de pé mais partido que quebrado
À mistura com erros de estilo e de infiel ortografia
E temos o perfil do poeta bem preparado
Para ser mais um ilustre membro da academia

Com cadeira e assento fixo, lugar numerado
E o alto prestígio de um muito defunto patrono
Já o poeta pode ser sustenido ou elevado
À sublime condição de rei sem trono.

Voa alta a muito divina inspiração
Vem a música suave, o ritmo e a melodia
Logo a seguir, bem expressivo, vem o refrão
E, a muitas vozes, o coro afinado da sacristia.

É o erudito académico muito solicitado
Para cultos saraus e muitas entrevistas
Poemas seus incluídos nas páginas das selectas
E o seu retrato oficial enche a capa de revistas

Agenda cheia, profere palestras, dá conferências
Enverga pronto-a-vestir, fato à medida, usa gravata
As salas cheias do aplauso de ilustres assistências
E é a crónica social que com rigor para todos o relata

Alcançada a pouca fama, por acréscimo vem a glória
A sempre curta fortuna dos concursos e dos prémios
A bandeira desfraldada e colorida da vitória
E o olimpo sempre baixo que apenas cabe aos génios.

20 de junho de 2017

Não faças da tua inteligência a ignorância dos outros

Não faças da tua inteligência a ignorância dos outros.
Olha-te ao espelho
Põe-te de perfil
Admira a ilusória elegância da tua silhueta
Ajeita os cabelos e o sorriso
Mira-te nos olhos
Vê para além deles
E da dimensão da imagem reflectida no cristal.
Vê tudo, até ao fundo de quanto és
Vê os outros, para além da névoa e do cisco no teu olho
Sente-os como deves sentir,
Como se o teu coração te fosse além do olhar e das palavras
Esforça-te por entendê-los
Por dar-lhes a mesma medida que queres para ti
Fá-los iguais, sem tirar nem por.
Dá-lhes a mão sem que ela queime
Descalça os saltos altos,
Desce ao nível do chão sobre que caminhamos
Cultiva o ritmo da poesia e a humildade das papoilas.
Não chores as tuas lágrimas em vão,
Chora-as também pelos outros,
Derrama nelas o teu desencanto
E as dores de quem sofre para além de ti
E do espelho em que te reflectes, frágil e efémera.

13 de junho de 2017

Escola vinte e um

Estou aqui desde sempre
De vida dada convosco
Como se estivéssemos a uma esquina de África
E nunca daí nos tivéssemos mexido.
Uma escola pública num bairro periférico
Uma carteira de dois lugares com um tinteiro a meio
E uma pena com um aparo na ponta
Para aprendermos a desenhar os anos do futuro.
A sala de aulas onde terá morado antes uma mercearia
Com toscas estantes de madeira
E barras de sabão azul cheirando à frescura dos eucaliptos
Do outro lado da rua.
Vestindo uma bata imaculadamente branca
Como se a terra não fosse vermelha
E as águas barrentas da chuva não corressem na valeta.
O aperto incómodo na bexiga pequena
Antes da hora do recreio e a pergunta solene:
Senhora professora, posso ir lá fora?
E a autorização carrancuda, como tudo o que é superior
Ao chão que é nosso e aos apertos da bexiga cheia.
A saída lenta, respeitosa e reverente
Antes da corrida aflita
Atravessando a rua feita só de terra e de charcos
À procura do mais discreto eucalipto
Capaz de calar o segredo e de ocultar a intimidade
Que éramos para além da bata e da braguilha dos calções.
Nada,
Nem automóveis nem pessoas utilizando a rua sem serventia,
Só casas de um lado,
Do outro uma mata de eucaliptos para alimentar as fornalhas
Dos comboios que iam atravessando a terra imensa,
Muito para lá de onde ficava o cinema
E a estrada curvava para o Bailundo
Sem se saber o que podia ser tão longe
Que ainda ficava para lá daquele nome e daquele lugar.
Às onze e meia em ponto
O apito agudo e prolongado que chegava do desconhecido
Que ficava para lá dos eucaliptos,
Onde eram as oficinas do caminho-de-ferro
E trabalhavam quase todos os adultos do bairro,
O relógio exacto da cidade, sem necessidade de meridiano nenhum,
Que soava para que se soubessem as horas e o que havia para fazer,
Pegar ao serviço às sete da manhã, ir almoçar,
Retomar o serviço à uma da tarde,
E às cinco era tempo para o regresso a casa e ao descanso.
Crescemos todos no meio dos capinzais e nunca nos perdemos da vida
Sabíamos o caminho para todos os lugares
Todos os carreiros eram parte da nossa família
Aprendemos a tabuada como se fosse uma cantiga
Fizemos o exame da quarta classe
Que deu para eu ganhar o meu primeiro relógio de pulso
Fomos à catequese, aprendemos as orações, fizemos a primeira comunhão
Espalhá-mo-nos por diferentes destinos
Namorámos
Muitos voltaram ao ponto de partida para casar,
Tiveram filhos e viram os anos passar
Com a chegada das chuvas e dos frios da madrugada.

[Fotografia; cortesia de Manuela Santana]

4 de junho de 2017

Não há nenhum caminho para o passado

Não há nenhum caminho para o passado. O passado são todos os sítios onde nunca estivemos. Sento-me aqui sozinho, a meu lado, como se estivesse na estação à espera do comboio e da tua chegada. Quando tu és presente desde sempre e muito para além disso, sem viagem de regresso. Temos as mãos dadas sempre para diante, como a fortaleza do molhe que espera pela vaga seguinte e pelo próximo embate. De nada importam os danos causados pelos temporais que ainda não houve, são ondas que não fazem a preia-mar. Não fazem transbordar os rios, não são desejos de fim de tarde.



Há apenas uma nostalgia breve em dizer-te que me fazes falta. Esta falta para diante, porque ela é a nossa presença. E tu estás aqui comigo, como se fossemos todo o tempo que o planeta tem para chegarmos ao sol. Seja a que velocidade for, o tempo é a coisa que mais possuímos, a que mais se nos liberta das intenções e do sonho. E o sonho é sempre este desejo fremente, carregado de madrugada e da certeza arenosa do deserto que está por desvendar. E no deserto somos tudo, sem mais vida do que a nossa, somos inteiros e completos. Pertencemo-nos, e sabemo-lo sem outro caminho.

3 de junho de 2017

São curtas as horas

São curtas as horas para que as minhas mãos cheguem ao limite do teu corpo. Um corpo pequeno para o comprimento do abraço e para a fragrância do sorriso. Mesmo assim te tento percorrer, como se fosse de rosas a cortina transparente dos teus olhos.