22 de julho de 2017

Os óculos é da vista ou é do sol?

Era 1976. À uma da tarde, sem ar condicionado, o carro escaldava por dentro e por fora, sob a brava inclemência do sol de Luanda. Enquanto ia gemendo rua acima, entre a Mutamba e o Kinaxixe, procurando acertar com o caminho para o local do almoço, algures nas proximidades da igreja da Sagrada Família. Como sempre, usava os meus óculos com lentes photogray, para me corrigirem uma ligeira miopia, que nunca exigira a referência a lentes de correcção na carta de condução. E, naturalmente, para me protegerem também um pouco os olhos, daquela luminosidade excessiva e única que Deus deu a África.

Mesmo ao cimo da rua, àquela hora e naquelas condições, a inesperada operação stop. Os camaradas fardados, de forma um bocado descuidada, as botas sujas, o encaracolado das carapinhas à toa, espreitando das boinas, empunhando belas e reluzentes kalashnikoves, a fazer-me sinal para que parasse. Encostei à berma da rua, os vidros abertos, o motor a trabalhar, aguardei. O que deveria ser o camarada chefe aproximou-se da minha janela e falou:

- Camarada, os documento?

Peguei na pequena bolsa que trazia no banco do lado, abri-a calma e tranquilamente. Retirei o bilhete de identidade, a carta de condução, o livrete e o título de propriedade automóvel. Tudo o que era preciso, tudo o que pertencia. E disse:

- Está tudo aqui camarada, faz favor…

O sol ardia-me na fronte, trazia-me o desconforto, alagava-me de suor a barba espessa e farta, digna do mais convincente evolucionário cubano. O camarada ordenou os documentos em dois grupos de dois, os pessoais e os do automóvel. Pegando nos que me pertenciam, fitou-os prolongadamente e, depois, fez o mesmo comigo. Depois disso pegou nos do automóvel e foi compará-los com a chapa de matrícula. Não disse nada e voltou à minha janela, mirou de novo os meus documentos e fez o mesmo comigo. Dirigiu-se à frente do automóvel e repetiu o gesto com os respectivos documentos e com a chapa de matrícula. Voltou, de novo não falou, não disse nada. Repetiu ambos os gestos alguma meia dúzia de vezes, enquanto o sol escaldava e o estômago se contorcia.

Depois, a meu lado, finalmente, falou para mim, austero e inquiridor, como sempre deve ser a autoridade:

- Camarada, os óculos é da vista ou é do sol?

E aí, abruptamente, percebi. Fez-se-me luz no cérebro, sob o sol aberto que inundava tudo. Pois, os óculos! O bilhete de identidade e a carta de condução sem eles. E, em ambos os documentos, eu também sem barbas. Estas até me beneficiavam, conferiam-me um aspecto de revolucionário convicto e confiável, ainda estou para saber porquê. E eu, distraído, surpreendido pela acção, esquecera-me de, por precaução, os tirar da cara e pousar ao lado.

Mas, sem hesitação, respondi, com convicção e respeito, porque a autoridade sempre merece e exige respeito:

- Os óculos são do sol camarada!

Calmamente o camarada chefe juntou os documentos e devolveu-mos. Parece-me que não sorriu. Por princípio, a autoridade não tem sorriso, só respeito. Com a mesma tranquilidade, arrumei-os na bolsa e nos lugares que lhes pertenciam. O camarada falou mais uma vez, sério como se o cacimbo alastrasse lá em baixo, sobre a baía.

- Pronto camarada, podes seguir.


E eu segui, em velocidade moderada, o motor suspirando de alívio pelo plano que enfrentava. Virando à direita para a Rua que ainda era chamada de Brito Godins, passei pelo edifício Suba, antes do Liceu Salvador Correia virei à esquerda. Para a frente, no fim da rua, ficava a igreja. Para trás ficavam os camaradas, continuando com a sua operação de vigilância. A revolução tem de ter sempre os olhos abertos, qualquer mosquito pode ser o perigo, nunca se sabe, o imperialismo tem os truques dele. As soberbas kalashnikoves rebrilhavam sob o sol inclemente e único da cidade de São Paulo da Assunção de Luanda. O mesmo sol, que em África é de graça, continua lá. Como tu, Camus, francês da Argélia, o anunciaste ao mundo!

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